O projeto literário de Svetlana Aleksiévitch é ao mesmo tempo de grande singeleza e vertiginosa ambição: ligar o gravador, puxar conversa com todo mundo e assim, de memória em memória, compor como colcha de retalhos uma espécie de coro que ultrapassa qualquer instância até então conhecida – relato jornalístico, ensaio acadêmico, ficção, até mesmo a poderosa poesia – na capacidade de fixar aquela história oral e meio fantasmagórica que, no fim das contas, é sempre a história mais verdadeira dos povos.
Para além de estátuas de heróis e datas cívicas, essa história impalpável responde a questões que não têm resposta no reino das grandes ideias concretas ou abstratas: como era nossa vida naquele tempo? Como ficou? Como posso ter sobrevivido a tanto horror? A que preço? História da vida privada, mas não só: também das paisagens íntimas, daquilo que permanece em silêncio sob o trauma. Como flagrar o que, nas palavras de Bob Dylan, voa no vento?
Svetlana lida com grandes tragédias coletivas: a Segunda Guerra Mundial, a guerra do Afeganistão, o desastre nuclear de Tchernóbil, o desmoronamento da União Soviética. No caso deste As últimas testemunhas – primo-irmão de A guerra não tem rosto de mulher, em que a voz é dada às mulheres –, acompanhamos o estraçalhamento que o maior conflito bélico da história provocou na vida de crianças, segundo lembranças que elas mesmas desencavam muitas décadas mais tarde.
O livro é devastador porque o olhar infantil sobre a guerra é talvez o mais pungente que possa existir. Se a barbaridade é sempre atroz, seu desabamento sobre criaturas de poucos anos de vida, das quais se pode dizer que são literalmente inocentes, pertence ao reino do intolerável. No entanto, serão consistentes as memórias que essas “testemunhas” conjuram com maior ou menor segurança tanto tempo depois?
A pouca confiabilidade de nossas lembranças poderia ser um ponto fraco do projeto de Svetlana. Afinal, a memória humana é sabidamente submetida a forças de subtração (esquecimento, recalque) e adição (falsas memórias, recriação), mesmo em situações bem menos estressantes do que as narradas aqui. Contudo, isso importa pouco. Tratando-se de um registro da história oral, sua prova dos noves é menos a verdade factual do que a própria narração – o modo como aquilo foi processado.
O trauma coletivo dá foco e coerência aos depoimentos soltos que Svetlana vai colhendo, e que do contrário correriam o risco de se diluir num oceano de banalidade demasiado humana – ainda verdadeiros, provavelmente, mas desprovidos de qualquer esperança de senso narrativo. É o horror histórico que potencializa e torna imantado cada detalhe de seus livros. Nada pode ser gratuito quando o mundo está acabando, pode?
Ao costurar sua colcha de retalhos, agindo mais como montadora de cinema do que como escritora propriamente dita, Svetlana é uma editora meticulosa que orquestra sua sinfonia de efeitos dramáticos, trágicos, patéticos, revoltantes, até líricos, como se não estivesse ali. A força de seus escritos não deixa dúvida de que a habilidade da autora que não ousa dizer seu nome é notável, ainda que inclua a mágica da ocultação de suas pegadas.