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Tempo de migrar para o norte: o difícil significado de casa

"Tempo de migrar para o norte", de Tayeb Salih, foi o livro indicado por Milton Hatoum para a TAG Curadoria "Tempo de migrar para o norte", de Tayeb Salih, foi o livro indicado por Milton Hatoum para a TAG Curadoria Share this post

Depois de sete anos na Europa, um sudanês retorna à sua aldeia de origem, à curva do Nilo. Está feliz em reencontrar seus familiares e a paisagem da África do Norte. Carregado de lembranças afetivas, aquele lugar reconforta o narrador como nenhum outro. Ao menos é essa a impressão que temos no início do romance: “Olhei para a palmeira do nosso quintal e constatei que a vida continua boa. Contemplando o tronco forte, as raízes fincadas na terra e a copa de folhas verdes, senti-me tranquilo. Não tenho mais a sensação de ser uma pena ao vento. Sou como aquela palmeira, uma criatura que tem origem, raiz e objetivo.”

Ao comparar-se com a palmeira (a palmeira representando o lugar de origem é uma imagem que deve aparecer com alguma frequência), o narrador se mostra apaziguado com sua terra natal. É uma sensação, no entanto, que não deve durar. Por ter experimentado a vida do Ocidente, o jovem sudanês do romance de Salih encontra-se agora entre dois mundos: se a velha aldeia representa o acolhimento familiar, o lugar é também regido por incômodos valores arcaicos e por uma rígida religiosidade. Como para toda a pessoa que parte, a volta para casa passa a ser, igualmente, o retorno a um país estranho.

Não à toa, o narrador não nomeado vai se interessar por um personagem que representa essa cisão de maneira ainda mais radical, Mustafa Said, o que acaba colocando Tempo de migrar para o norte na categoria dos livros de narradores-testemunha; quem conta a história não é tão importante quanto sobre quem se fala na história. Tal qual um Grande Gatsby do oriente, Mustafa Said é um personagem ambíguo e cheio de mistérios, tendo inclusive no currículo o assassinato brutal de uma de suas amantes, aos poucos revelado ao leitor. O crime, aliás, está envolto em uma atmosfera erótica, motivo pelo qual Tempo de migrar para o norte foi banido no Sudão por décadas. Ao abordar sexo e religião na mesma obra, Tayeb Salih mexeu em um vespeiro.

Como acontece em As alegrias da maternidade, livro enviado aos associados da TAG Curadoria em outubro do ano passado, temos aqui o retrato de uma sociedade arcaica debatendo-se com as influências e os valores de um novo tempo. No caso do romance de Emecheta, o embate era entre a Nigéria rural e a Nigéria urbana representada por Lagos. Aquele era, também, um embate geracional. Algo muito parecido ocorre no romance de Salih; não se trata de uma simples oposição entre o Sudão e os países colonizadores, mas de uma crise de identidade de um lugar que já não pode ser como antes: “É preciso que não haja contradição entre o que o aluno aprende na escola e a realidade do povo [declara um ministro que discursa em um prédio público luxuoso, cuja tribuna é de mármore vermelho, o mesmo que cobre o túmulo de Napoleão no Invalides]. Quem aprende hoje quer se sentar a uma mesa confortável, embaixo de um ventilador, quer morar numa casa rodeada por um jardim e com ar-condicionado, quer andar num carro americano da largura da rua. Se não cortamos esse mal pela raiz, estaremos contribuindo para a formação de uma classe burguesa que não tem nenhuma relação com a realidade de nossa vida e ela será mais danosa para o futuro da África do que o colonialismo em si.”

Como estancar essas influências? Como esperar que os sudaneses não olhem para o que o Ocidente oferece e, com isso, acabem matando sua própria identidade?

Mustafa Said viajou pelo mundo inteiro. De maneira hipócrita, um dia diz ao narrador, futuro tutor de seus filhos, que não os deixe seguir o mesmo caminho. É interessante perceber que esse trânsito entre os dois mundos foi para ele uma benção e, ao mesmo tempo, uma maldição. Said aproveita-se, por exemplo, do seu “exotismo” para fazer suas vítimas sexuais. Ele representa o papel, decora a casa em Londres com elementos clichês da cultura oriental, torna-se uma caricatura. Em sua biblioteca na Inglaterra, tem apenas livros em árabe. Na biblioteca do vilarejo, apenas livros em inglês. Será essa cisão que o levará à tragédia final?

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3 comments

  • Adorei o livro, não é extenso e é bem objetivo. Basicamente duas pessoas loucas que se encontraram e viveram uma relação de amor e ódio que acabou em tragédia, para ambos. Não entendi direito o que levava as mulheres a se suicidarem após conhecerem Mustafa, mas até minha próxima caixinha chegar, estarei refletindo sobre o assunto. O que mais me chamou a atenção no livro foi a relação de Mustafa com a sua mãe. Apesar da aparente distância que eles tinham um do outro, achei espetacular a mãe tratá-lo como um ser humano que pode e deve seguir seu caminho e não como a maioria das mães veem os filhos (um eterno bebê dependente delas)… até grifei a parte que ele diz: “e foi assim que nos despedimos; sem lágrimas, sem beijos. Apenas dois humanos que viveram juntos durante um tempo e agora devem se separar para seguir seus próprios caminhos”. É forte demais, tão forte que chega a ser bonito. Obrigada, TAG… Uma das melhores escolhas que fiz esse ano foi entrar pra esse clube tão especial.

  • Gostei muito do livro! Texto excelente, que provoca uma leitura ao mesmo tempo fluida e poética, com um acentuado lirismo em diversas passagens, metáforas bem encaixadas e sem exageros, atiçando a curiosidade e nos transportando para a história. Isto tudo, apesar do enredo pesado, da tragédia dos personagens e do tema áspero.

  • Ótimo livro, sempre o indico. Possui uma linguagem envolvente com um “Q” de mistério, além de abordar questões familiares e culturais.

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