Alberto Mussa, curador de outubro da TAG, é o criador de uma das prosas mais originais da literatura nacional contemporânea. Seus livros, que por questões comerciais preenchem as prateleiras dedicadas a romances, contos, ensaios e não-ficção, são melhor classificados como híbridos, e têm na abordagem das mitologias seu principal ponto de interseção. Aos 58 anos, Mussa também é tradutor e já conquistou prêmios literários como o Casa de Las Américas e o Machado de Assis. Sua obra já foi publicada em 17 países e recebeu traduções para mais de 15 idiomas.
O escritor escolheu O mundo se despedaça, de Chinua Achebe, para os kits de outubro dos associados da TAG Curadoria.
TAG – Sabemos que você é um grande leitor de livros brasileiros. Na sua opinião, qual é o panorama atual do meio literário nacional?
Alberto Mussa – Creio que volta a ganhar força a valorização da narrativa, da trama, do enredo. Um romance em que os personagens agem e cuja ação provoca ou sugere reflexão e emoções. Muito diferente de uma linhagem que andou muito em voga, a do narrador em primeira pessoa, homem de classe média em crise existencial, que discorre sobre si mesmo, sendo ele próprio quem define os sentimentos e as reflexões do leitor.
Os seus livros têm uma forte ligação com o passado do país. Como você enxerga a relação entre a História e a construção de uma identidade nacional?
Mussa – Ser é lembrar. Identidade é memória. Isso vale tanto no plano individual quando no social. Um dos problemas brasileiros mais graves é justamente o ponto de vista europeu, que caracteriza as camadas mais bem-sucedidas da população. Elas pensam o país ainda como uma colônia. Outro dia, ao comprar um Atlas Histórico do Brasil, me revoltei quando vi que o primeiro mapa do livro era o de Portugal, o mapa da formação do estado português! É assim que muitos ainda enxergam a história brasileira.
Em O mundo se despedaça, a crença do chi, ou deus pessoal, desempenha um papel importante, definidor da sorte de cada indivíduo da comunidade Igbo. A sorte (ou a falta dela) também é elemento recorrente nas obras do seu “Compêndio mítico do Rio de Janeiro”, aparecendo como traço da mitologia local. Como você enxerga essas interseções?
Mussa – Pergunta muito interessante, porque nunca tinha feito essa associação. Talvez o romance de Achebe, e outros mitos africanos, tenha se fixado no meu inconsciente. Na verdade, escritores sempre escrevem sobre o que já leram.
Quando você leu O mundo se despedaça pela primeira vez? Quais foram suas impressões?
Mussa – Foi em 1984, quando descobri a antiga coleção “Autores Africanos”, da Editora Ática, que era vendida no Centro Acadêmico da Faculdade de Letras da UFRJ. Era o meu primeiro ano no curso de Letras e eu ainda estava mais acostumado a ler os grandes clássicos da biblioteca do meu pai. O romance do Achebe foi de um impacto enorme, criou um novo mundo no meu imaginário e me fez mergulhar nas mitologias da África.
De que forma a divulgação de obras como O mundo se despedaça pode contribuir para a diversificação de narrativas e o combate à predominância da visão eurocêntrica no nosso país?
Mussa – Acho que a literatura africana em geral, e mais especificamente livros como os do Chinua Achebe, são importantes em dois sentidos: primeiro, porque inserem a África, a verdadeira África, como espaço ficcional no imaginário dos leitores; segundo, porque destroem os estereótipos sobre essa África e os africanos. Mesmo em certos discursos engajados, notamos a imagem de uma África paradisíaca, na qual há apenas vítimas, nunca vilões.
Apesar da obra contar a história da desintegração do povo Igbo pelas mãos dos colonizadores, Alberto da Costa e Silva diz, no prefácio: “A história não é boa nem má – parece dizer-nos Achebe. Nascemos dela, de seus sofrimentos e remorsos, de seus sonhos e pesadelos”. Como você entende essa afirmação?
Mussa – É uma percepção não-moralizante, ou “amoral”, da história, no sentido de que ela deve ser uma fonte de reflexão sobre a condição humana, e não um palco para julgamentos morais, para condenações e sentenças, ainda que isso faça parte do nosso impulso natural em relação a qualquer narrativa. Sempre tomamos partido. Mas precisamos ir além. Precisamos, na verdade, perceber que estamos sempre dos dois lados.
“Escritores sempre escrevem sobre o que já leram.”
Quais são seus projetos literários para o futuro? Há algum em andamento?
Mussa – Estou terminando um ensaio sobre mitologia, mais especificamente sobre os mitos do roubo do fogo: A origem da espécie. Depois, quero escrever um romance que se passa no ambiente das escolas de samba e do jogo do bicho. Tenho também projetos de um romance sobre as bandeiras paulistas e outro sobre os piratas.
O que você gostaria de dizer aos 30 mil associados que lerão esse livro pela primeira vez?
Mussa – Que eles estão diante da rara oportunidade de adentrar um universo cultural muito diferente, universo esse que é retratado de dentro para fora por quem pertence a ele. A experiência literária consiste exatamente nisso: em nos fazer sair de nós mesmos para vivermos vidas que não são nem poderiam ser as nossas, e isso amplia a nossa compreensão sobre a natureza humana.
A estante de Alberto Mussa
O primeiro livro que li: Lembro dos que me marcaram muito: Os doze trabalhos de Hércules, do Monteiro Lobato; O gênio do crime, do João Carlos Marinho e Napoleão em Parada de Lucas, do Orígenes Lessa.
O livro que estou lendo: O excelente Enterre seus mortos, da Ana Paula Maia.
O livro que eu gostaria de ter escrito: Asfalto selvagem, do Nelson Rodrigues.
O último livro que me fez chorar: De arrependimento, Finnegans Wake, do James Joyce; de emoção, O passo bandeira, do Oswaldo França Júnior.
O último livro que me fez rir: Os tambores silenciosos, do Josué Guimarães, que também me fez chorar.
O livro que eu não consegui terminar: Guerra e paz, do Tolstói, porque não cheguei ao fim; e Memórias póstumas de Brás Cubas, do Machado, porque sempre releio.
O livro que eu dou de presente: Variam, em função da pessoa. O último foi The bleeding of the stone, do escritor líbio Ibrahim Al-Koni.
O livro que mudou a minha vida: A invenção de Morel, do Bioy Casares.