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Entrevista: Alejandro Zambra e “O deserto dos tártaros”

Alejandro Zambra Share this post

Em outubro, a TAG Curadoria enviou o livro O deserto dos tártaros, de autoria do italiano Dino Buzzati. Na obra, o jovem tenente Giovanni Drogo recebe com alegria uma missão no forte Bastiani — para ele, a primeira etapa de uma carreira gloriosa. Embora não pretendesse ficar por muito tempo, o oficial de repente se dá conta de que os anos se passaram enquanto, quase sem perceber, ele e seus companheiros alimentam a expectativa de uma invasão estrangeira. A espera pelo inimigo transforma-se na espera por uma razão de viver, na renúncia da juventude e na mistura de fantasia e realidade. Publicado originalmente em 1940, O deserto dos tártaros marcou a consagração de Dino Buzzati entre os grandes escritores italianos e foi eleito pela crítica especializada um dos melhores livros do século.

A indicação foi do chileno Alejandro Zambra, destacado escritor contemporâneo que nos concedeu entrevista exclusiva sobre O deserto dos tártaros e sua escolha:

TAG  – Em uma entrevista à Folha de São Paulo, você diz que um dos seus grandes temas é o pertencimento. Giovanni Drogo, herói de O deserto dos tártaros, parece buscar o mesmo sentimento em muitos momentos de sua trajetória. Como você diria que essa questão poderia ser pensada no romance de Dino Buzzati?

Alejandro Zambra – Sempre que leio esse livro, Giovanni Drogo me impressiona: sua inocência, sua alegria de ser parte, de participar. E lemos quase como se o estivéssemos cuidando, como se quiséssemos protegê-lo, intuindo o que vai acontecer… É uma narração de maestria impressionante. Buzzati consegue dotar o personagem de uma enorme humanidade. Não rimos dele, mas o observamos, também, sem falsa compaixão. E essas pinceladas de humor, às vezes tão sutis, quase imperceptíveis.

Em 2002, você publicou um ensaio no livro Roberto Bolaño: la escritura como tauromaquia. Sobre Julio Cortázar, autor argentino, você afirma estar em seu DNA. Como esses e outros escritores latino-americanos influenciaram sua escrita? Algum brasileiro em particular fez parte do seu percurso de formação literária?

Zambra – Minha maior influência foi, no princípio, a poesia chilena. Cortázar também, mas primeiro a poesia chilena, que, no Chile, é o grande mito fundador. Brasileiros, bem, há Clarice Lispector, que li há quase vinte anos e nunca deixei de ler. E muitos outros. Há um escritor que não sei se é muito conhecido e que também não foi muito publicado em espanhol que se chama Murilo Rubião. Li um conto dele em uma antologia de contos traduzidos para o espanhol, também faz vinte anos, e o aprendi, não sei como, sei recitá-lo quase de memória. E logo li outros contos, muito bons. Há muitos escritores brasileiros de que gosto, também os contemporâneos, como Emilio Fraia ou Miguel del Castillo. Há pouco li Opsanie Swalata, de Verónica Stigger, e achei um livro belíssimo, fazia tempo que não lia algo tão brilhante e profundo e divertido. Embora não tenha a ver com ficção, tenho estado muito próximo de Felipe Hirsch, que fez uma peça de teatro a partir de meu livro Múltipla escolha, com atores chilenos. Me sinto muito feliz com isso, embora não tenha podido ver a obra pois não vivo mais no Chile.

No seu universo ficcional, a preocupação ou a não preocupação com os gêneros – poesia, romance, ensaio – parece ser uma questão importante, que o distingue dentre os autores contemporâneos. De que forma você enxerga esta necessidade de classificação da literatura?

Zambra – É que nunca penso os livros em termos de gênero. Não me levaria a nada! Preciso sempre estar um pouco exposto às mudanças de plano, deixar entrar a incerteza no quarto onde escrevo. Mas tampouco é experimentar por experimentar. Às vezes aproveito ritmos muito sóbrios, convencionais, e outras vezes encontro ou busco beleza em formatos mais estranhos. A ideia é que não haja uma ideia. Há planos, mas eles mudam o tempo todo. Os gêneros são como camisas incômodas, e escrever é como chegar ao momento em que a camisa é tua, tem a forma do teu corpo. É um processo intenso, onde gozo e incerteza coincidem. Creio que com Múltipla escolha foi mais intenso, inclusive. Me interessava essa periferia da literatura, esses arredores. Estava ali a alegria da paródia, o impulso da paródia, e esse momento crucial em que o riso e a dor se confundem.

Acerca da ditadura, muitos escritores brasileiros publicaram livros que, segundo a crítica, tecem uma espécie de reconstrução da memória coletiva nacional, apagada durante e após o período. Seu terceiro livro, Formas de voltar para casa (2011), narra acontecimentos da ditadura chilena sob a perspectiva de personagens secundários. De que modo o aspecto da memória se desenvolveu no romance?

Zambra – Minha primeira ideia era escrever sobre essa vila em Maipú onde cresci, a vila Las Terrazas, na travessa Aladino. Claro que sabia que, ao falar de infância, falaria da ditadura. É quase impossível para mim separá-las. Vão juntas, em múltiplos sentidos. Mas não queria partir de uma ideia, dessa ideia, de qualquer ideia, mas sim deixar correr o relato. Creio que muitos chilenos de minha idade lidam, de algum modo, com essa sensação de insuficiência, de impropriedade: com a impressão ou com a convicção de que nossa experiência era irrelevante. Eram outras as histórias que deviam ser contadas, seguem sendo outras as histórias de verdadeira importância. Queria escrever sobre essa tensão, sobre essas tensões. Sobre a legitimidade da dor. Em Formas de voltar para casa, há uma tentativa de fazer uma pausa para olhar mais de perto o quadro da sua história pessoal. Você conseguiu compreendê-la melhor? De qual maneira você conseguiu se aproximar de seus pais? Descobri, busquei, mudei muito enquanto escrevia esse livro. Escrevo por isso, para gerar uma experiência ou para acompanhá-la. Serviu para me aproximar, em geral, da minha comunidade, foi muito importante.

Sobre Múltipla escolha, publicado em 2014, você diz que “é um livro sobre a ilusão de uma resposta”. O que mais chama a atenção do leitor ao lê-lo é a forma, já que ele é convocado a interagir com a história, a partir de múltiplas escolhas. Você poderia nos contar um pouco mais sobre como aconteceu o processo de escrita desta obra?

Zambra – Estava escrevendo uma espécie de romance sobre a época em que realizamos esse exame, em 1993, mas não estava gostando. Uma noite, comecei a parodiar os exercícios e o espaço se abriu em várias direções. Tudo espelhava, e era também como repovoar tudo. Como pintar bigodes no rosto das pessoas, mas também como me dar socos nos olhos. Digamos que estive escrevendo exercícios por meses, paródias dos exercícios reais, logo paródias das minhas paródias, e assim foi. Um amigo os leu e me disse que gostava deles, porque era como se “o escritor da prova” tivesse enlouquecido. Essas provas são escritas por várias pessoas, têm vários “autores”, mas naquele tempo acreditávamos que era apenas um, um único Deus-ditador-autor que sabia todas as respostas corretas e as escondia. Ao preparar uma prova, tentávamos entender essas estruturas, adivinhar os ardis. Algumas pessoas não dedicaram um minuto da sua vida a entender o romance ou a poesia como gênero, mas quiseram entender os “termos excluídos” ou as “propostas de redação”. Eram como gêneros literários bastardos, dispositivos que pretendiam normatizar a experiência. Você queria entendê-los para ir bem na prova – entrar em uma universidade, no melhor dos mundos com uma bolsa para não se endividar pelo resto da vida, como ainda acontece. Muitos chilenos que não leem romances ou poesias leem esse livro como se não fosse literatura: estão, por assim dizer, perfeitamente treinados para lê-lo. Essa dimensão para fora do claustro literário importa muitíssimo para mim.

O que você diria aos mais de 25 mil leitores do clube que lerão O deserto dos tártaros pela primeira vez?

Zambra – Que os invejo profundamente pois lerão um romance maravilhoso. Amo relê-lo, mas também gostaria de ler pela primeira vez…

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