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Entrevista: Contardo Calligaris e “Ponto cardeal”

Contardo Calligaris | Foto: Rodrigo Cancela Share this post

“A ficção é a via régia de acesso à diversidade dos outros”

Um dos cronistas mais sensíveis do Brasil atual, o psiquiatra e psicanalista Contardo Calligaris fala, nesta entrevista, sobre como a leitura é o maior dos exercícios de alteridade. Ele, que diz não confiar em quem não lê e nem assiste a ficção, conta à TAG sobre sua relação com a leitura e a escrita e fala daquilo que o associado pode aprender com a história de Ponto cardeal.

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TAG — Queria que você começasse nos contando um pouco da sua relação com a escrita – desde aquela relativa à sua área de atuação profissional até suas incursões na literatura. Como foi sua caminhada de pesquisador a cronista e romancista?

Contardo Calligaris — Na verdade, a escrita de ficção foi a primeira. E tendo a pensar que minha formação acadêmica e psicanalítica foi, por assim dizer, uma espécie de “desvio”. A partir dos 10 anos ou por aí, só queria ser escritor (de ficção e de aventura – embora imaginasse que as aventuras seriam, de alguma forma, as que eu mesmo viveria). Minto, queria ser escritor e fotógrafo. O primeiro texto que escrevi foi um conto de ficção, uma história que se passava na Segunda Guerra Mundial, no front do Pacífico (bem longe de casa, né?).

Depois disso, aos poucos, a universidade e a psicanálise transformaram a minha escrita. A volta à ficção começou pelas crônicas semanais na Folha: com elas, reaprendi a escrever e redescobri o prazer de contar. O que me levou, enfim, aos romances. Teria continuado escrevendo romances se não tivesse encontrado a HBO no caminho e passado seis anos escrevendo e dirigindo um seriado autobiográfico-ficcional, Psi .

Enfim, a ficção para mim não é apenas o prazer de ler e de escrever. É também uma espécie de parâmetro moral: não confio em quem não lê ficção ou não assiste a ficções no cinema. A ficção é a via régia de acesso à diversidade dos outros e à nossa própria complexidade.

Por que a indicação de Ponto cardeal para a TAG?

Porque o livro nos aproxima de uma experiência que pode ser muito afastada da nossa, mas, pela escrita de Récondo, se torna possível de entender, em toda sua complexidade, justamente.

Sobre a personagem de Laurent/Lauren, o que você acha que ela tem a nos ensinar?

A grande lição é que alguém pode querer ou precisar mudar de gênero sem que essa necessidade interna seja ligada a uma fantasia sexual. Por isso, o tema do livro de Récondo pode ser escabroso, mas o texto é, paradoxal – mente, castiço.

Interessante notar que o livro ganhou, na França, o prêmio dos estudantes secundaristas, o Prix du roman des Etudiants France Culture – Télérama. Quase sempre leio os romances franceses que ganham esse prêmio: confio nos estudantes franceses do ensino médio.

É um livro necessário em uma época em que a maioria das pessoas entende muito pouco do que é o drama de alguém que, ao se ver no espelho, descobre que nasceu, por assim dizer, “no corpo errado”.

Apenas recentemente a transexualidade deixou de ser classificada como doença pela OMS. Como você vê a evolução da relação entre medicina, psicologia e identidade de gênero?

A medicina e a psicopatologia apenas voltaram a fazer seu trabalho, ou seja, deixaram de ser milicianas a soldo da boçalidade dos moralistas.

Só para explicar: na minha terminologia, os boçais são todos aqueles que mal conseguem controlar dentro de si impulsos, desejos e fantasias que eles “desa – provam”. Não podendo se controlar, eles fazem de tudo para controlar os mesmos impulsos nos outros. E, com isso, ficam ridiculamente satisfeitos.

O que você acha que o leitor pode aprender a respeito de convivência com Ponto cardeal?

A cena em que o vizinho assiste a Lauren levando o lixo, já vestida como mulher, é bem emblemática. A reação da colega e melhor amiga dela, também. Sem contar com a reação das “crianças”, que é muito bem elaborada por Récondo. Aliás, é bom começar pela reação do filho de Lauren, que todos entendemos facilmente, embora possamos esperar que seja diferente. Ou seja, ele, o rapaz, pode ser nossa porta de entrada para entender as dificuldades de quem desaprova, critica, despreza. Entendê-las não significa desculpá-las. Até porque essas reações são de fato contra os desejos e as fantasias daquele que reage.

Li uma entrevista em que você fala dos nossos problemas com a felicidade – como nosso desejo muda de foco quase imediatamente após atingirmos um objetivo muito esperado. Queria que você falasse um pouco disso e relacionasse à trajetória de Lauren. O contentamento dela após a transição vai acabar?

É bem essa a questão. Se alguém chegar a mudar de gênero para realizar uma fantasia sexual, é muito provável que, uma vez a mudança feita, ele se deprima profundamente, inclusive com sérios riscos de suicídio. Pois, obviamente, não há reversão de uma mudança de gênero.

A transição de Lauren, justamente, não parece obedecer a uma fantasia sexual, nem mesmo a um desejo: ela é uma necessidade básica da identidade dela – uma mudança sem a qual ela sequer conseguiria se reconhecer no espelho.

Por último, uma questão que acho que pode nos auxiliar a ler esse livro com olhos mais empáticos: por que o diferente incomoda tanto?

O que disse antes sobre a boçalidade já constitui uma resposta. Odiamos o diferente porque ele nos apre – senta algo de nós mesmos que preferimos ignorar, esquecer, reprimir e que, portanto, odiamos nos outros. Considerando o ódio que suscitam os transgêneros hoje, só podemos concluir que, no mínimo, fantasias sexuais de mudança de sexo devem correr cada vez mais soltas. Mais claro: quem despreza, odeia e quer reprimir uma Lauren está de fato incomodado com seus próprios sonhos de mudança de sexo.

Mas essa é outra história – não a de Lauren.

A estante de Contardo Calligaris

O primeiro livro que li: vai saber, mas o primeiro livro grande (em número de páginas) que li por iniciativa só minha foi As far as my feet will carry me, de Josef Martin Bauer (li em italiano: Finché i piedi ci portano).

O livro que estou lendo: Monsieur, de Emma Becker e As coisas, de Tobias Carvalho

O livro que eu gostaria de ter escrito: A divina comédia, de Dante Alighieri

O último livro que me fez chorar: É isto um homem?, de Primo Levi

O último livro que me fez rir: na adolescência, eu ria bastante com os romances de Guareschi, as histórias de Don Camillo e Peppone. Já não sei se hoje eu acharia graça.

O livro que eu não consegui terminar: muitos, e não é uma coisa de conseguir ou não conseguir. Já faz uns vinte anos que perdi toda a vergonha e abandono a leitura assim que um livro me entedia, sem complexos.

O livro que eu dou de presente: pergunta impossível. É preciso saber para quem…

O livro que mudou a minha vida: Teorias de século e cristianismo, do jesuíta Vittorio Marcozzi. Era um livrinho que criticava marxismo, darwinismo e freudismo com uma leviandade extraordinária. Li, e me pareceu tão brega e nulo que me interessei imediata e sucessivamente pelo marxismo, pelo darwinismo e pela psicanálise. Marcozzi foi, em suma, uma influência decisiva na minha vida.

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