Entrevista: Jarid Arraes e "A terceira vida de Grange Copeland" - Blog da TAG
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Entrevista: Jarid Arraes e “A terceira vida de Grange Copeland”

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“A realidade vai além dos nossos enquadramentos.”

Jarid Arraes se põe no mundo com a visão de uma diva pop e a sensibilidade do sertão. A curadora do mês conversou por e-mail com a TAG sobre sua vivência na literatura, sobre descobrir escritoras negras e sobre tudo aquilo que Alice Walker pode nos ensinar.

TAG — Queria começar perguntando como você se descobriu escritora. Como foi esse processo de chegar à proporção ideal de “Cariri com Lady Gaga”?

Jarid Arraes — Um dos primeiros contatos que tive com a literatura aconteceu na garupa de uma moto, quando meu pai declamou pra mim versos de dois poemas. Tinha onze anos e ri quando ouvi “no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho” e “apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija”. Passei muitos dias pensando em como a poesia podia ser tantas coisas ao mesmo tempo. Um poema sobre um porquinho-da-índia (que despertou a conversa), uma repetição sobre uma pedra no caminho, ou intensa, nojenta. Linda. Me apaixonei pela poesia de um jeito muito profundo, até hoje é minha linguagem literária favorita.

Cresci na familiaridade do cordel, já que meu avô e meu pai são cordelistas e xilogravadores. O cordel foi muito importante para que a literatura soasse como um caminho interessante e para que eu começasse a escrever; ainda que por muito tempo eu não compartilhasse. Minha mãe foi fundamental; era professora e me ensinou a ler antes do tempo esperado da escola. Ela lia pra mim quando eu era bem pequena e eu decorava as histórias e contava pra ela com as mesmas palavras. Minha família, de formas diferentes, me estimulou para que eu me relacionasse de maneira positiva com as letras e a literatura. E por isso digo que escrever não é um dom, é uma intimidade que você vai pegando. Então eu me descobri escritora quando percebi que eu tinha intimidade com a escrita. Mas meu processo de descoberta e de começar a compartilhar o que eu escrevia teve muitas faces. Uma delas, a Lady Gaga.

“Me sinto livre para aproveitar cada coisa no momento presente.”

Quando fui convidada pra Flip, a Folha me chamou para escrever sobre uma obra de arte que me impactou na vida, e eu escrevi sobre a Lady Gaga. Nossa! Recebi perguntas e até questionamentos meio indignados. Mas, como eu falo no artigo, a Lady Gaga me inspira criativamente de muitas formas. A cada nova “era” sua, ela constrói novas personagens e narrativas. E sempre é tudo muito coeso. Ela conta histórias com suas personagens, que são muitas vezes bizarras, estranhas. E esse “estranho” sempre me encantou na arte. Foi a estranheza da poesia, declamada na garupa da moto, que me fez querer a literatura. Foi a estranheza da Lady Gaga que me atraiu de forma magnética e, gratamente, me levou até uma artista maravilhosa. O cordel também tem sua aura de estranheza, com narrativas fantásticas. E as xilogravuras do meu avô sempre me impressionavam, com muitas bestas e muitos riscos marcantes. Tive um imenso privilégio por ter crescido cercada por tantas manifestações artísticas da nossa dita cultura popular.

Não sei se eu tenho um balanço entre o sertão do Ceará, o Cariri e a Lady Gaga. A prosa e a poesia. A poesia no geral e isso tudo. Mas me sinto livre para aproveitar cada coisa no momento presente. E me sinto feliz porque tenho essa mistura de referências, sonoridades, texturas.

Na Flip de 2019, você participou de uma mesa com a Carmen Maria Machado e disse que se emocionou muito quando, na adolescência, descobriu que havia escritoras negras ao conhecer Conceição Evaristo. Como é que foi isso?

Durante toda a minha descoberta literária, eu só tive acesso a livros escritos por homens brancos. Pegava livros com meu pai e na biblioteca muito pequena da escola. Li coisas incríveis. Drummond, Ferreira Gullar, Leminski, Augusto dos Anjos, Tolkien. Meu acesso a livros escritos por escritoras negras só veio quando eu já tinha dezenove anos, comecei a pensar sobre machismo, racismo, e então me perguntei por que não conhecia mulheres negras que tinham feito grandes coisas na nossa História. Comecei, claro, pela literatura. E foi aí que encontrei os Cadernos Negros e a Conceição Evaristo. Encontrar a Conceição foi um momento muito emocionante, porque eu não sabia, conscientemente, que a ausência de mulheres negras escritoras nas minhas referências era uma espécie de bloqueio pra mim. Um tipo de impedimento para que eu enxergasse como possível o meu próprio caminho como escritora. Junto com a Conceição, vieram outras. Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves, Toni Morrison, Maya Angelou, Alice Walker. Minhas primeiras referências. As primeiras referências de muita gente.

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E a sua relação com Alice Walker? O que motivou sua indicação de A terceira vida de Grange Copeland para a TAG? O que você espera que essa história ensine ao leitor?

Alice Walker é uma grande e premiada escritora. Muita gente conhece A cor púrpura, pelo próprio livro, pelo filme ou pelo musical. E como A cor púrpura é esse imenso clássico do nosso tempo, achei que seria maravilhoso termos o primeiro livro escrito por Alice Walker – A terceira vida de Grange Copeland –, que era inédito no Brasil até essa indicação para a TAG. Meus outros motivos transitam entre os temas e a própria autora. Como eu disse, Alice Walker foi uma das primeiras escritoras negras que li, e sei que muitas pessoas também podem dizer o mesmo. Tenho muita admiração por ela, não só como autora, mas como pensadora, como teve coragem de falar sobre tantos temas controversos na sociedade e dentro da própria comunidade negra nos EUA, como bissexualidade.

Espero que A terceira vida de Grange Copeland seja lido pelos leitores com fluidez e paciência. Espero que esse livro nos ensine a olhar o mundo com mais compreensão de que a realidade vai além dos nossos enquadramentos. E que, mesmo assim, temos que nos movimentar para que ela seja melhor.

Acho que um dos temas desse livro é o conhecimento como forma de emancipação e possibilidade de futuro para as minorias, mas em especial para as mulheres – como se vê claramente no caso de Mem, que tem seu futuro frustrado pela violência de Brownfield, mas também de Ruth. Queria que você falasse um pouco disso pra gente.

Concordo que o livro fala muito sobre a vida roubada, o futuro roubado. É muito doloroso, muito feio e extremamente desconfortável olhar tão de perto como acontece uma cadeia de violência. Como um trauma começa e bate contra alguém em posição vulnerável. Não é fácil assistir a quem foi abusado se tornar abusador. Penso na incrível escrita de Alice Walker, que trouxe tudo isso de forma tão conturbada e sensível para a literatura, e 9 também no quanto podemos refletir, de forma solitária, sobre todos os temas que aparecem no livro. Eu acho que precisamos de introspecção, que paciência para refletir é fundamental, e que esse livro pede isso. Ele é muito importante para quem já pondera sobre racismo, machismo, abuso, relações familiares, traumas, sociedade, educação, mas para quem não gosta desses papos também. É uma chance para sentir muitas coisas. Eu acho que você pode sair uma pessoa bastante diferente depois dessa leitura e ter uma compreensão mais refinada sobre o sofrimento humano. Eu não seria capaz de falar algo – aqui e agora – sobre essas questões, porque não me pareceria à altura do que eu realmente pensei e senti enquanto lia A terceira vida de Grange Copeland. É claro que precisamos conversar sobre racismo e machismo, combatê-los, ainda vivemos as consequências da escravidão, e há estatísticas e estudos, mas vocês já leram A terceira vida de Grange Copeland? Vocês sentiram raiva, confusão e acharam triste e não acreditaram e argumentaram consigo mesmos e pensaram em parar em algum momento?

Da mesma forma, naquela mesma mesa da Flip, a Carmen disse que “a literatura é a sobrevivência para as mulheres”. Acho que isso vale tanto para a leitura quanto para a escrita, não? O que sua experiência como escritora, leitora e mentora de outras escritoras lhe ensinou sobre isso?

Entendo que uma das questões importantes nisso é reconhecer em outra mulher uma chama que também parte de você, saber que você não tem que reagir sozinha, há outras que vão reagir ao seu lado. A literatura tem essa capacidade lindíssima de aproximar pessoas imensamente diferentes, porque nós nos encontramos na qualidade humana que nos une. Mesmo quando o personagem é um elfo do sexo masculino, eu ainda encontro nele muita coisa de mim. E o mesmo vale para uma personagem mulher e negra das décadas pós-escravidão nos EUA, como a Alice Walker escreveu; um homem pode encontrar nessa personagem características que também são suas. Nós passamos muito tempo buscando humanidade em nós e nos outros. Falhando também, é claro. Mas vejo na literatura essa pulsação tão forte. Eu sei por que existem grupos de leitura de livros escritos por mulheres, grupos de escritoras e eventos voltados para ouvir autoras. Porque estamos preenchendo lacunas de humanidade. Há muitos que sentem dificuldade de enxergar mulheres como tão humanas quanto, muitos que não conseguem ler um livro escrito por uma mulher e ter a percepção de que aquela obra é tão universal quanto um livro escrito por um homem. Mas a literatura sempre foi uma ferramenta de existência, é justo e previsível que as mulheres utilizem a literatura como plataforma para afirmar a existência. A existência da escrita, da criação, da voz, da coletividade e da individualidade.

E como isso se relaciona com o que você nos traz em Redemoinho em dia quente?

Posso dizer que o Redemoinho em dia quente é uma afirmação de existência em vários sentidos. Sabe, mesmo depois que me tornei escritora, mesmo depois que publiquei três livros, os meus próprios livros ainda não estavam acessíveis no Cariri. Então eu quis voltar toda a minha energia criativa para minhas raízes. Tive essa ideia de um livro de contos com protagonistas e narradoras mulheres do sertão do Ceará, mostrando o Cariri pelos olhos dessas mulheres. E eu não escrevi um sertão de chão rachado e caveira de vaca. Cansei dessa imagem que tanta gente tem como única verdade de tanto ser contada de novo e de novo. Escrevi o sertão onde eu cresci e as personagens que surgiram a partir das mulheres de lá. Diferentes, diversas, idosas, jovens, de meia-idade, crianças, religiosas, questionadoras, bizarras, assustadoras, em situações tristes, engraçadas, inesperadas, enfim. Um monte de cheiro, cor e barulho. Uma oportunidade de colocar o sertão na literatura de um jeito que eu nunca li. Uma forma de chegar até lá, finalmente, com um livro meu. Já que agora eu estou numa grande editora, já que agora meu livro fala sobre nós, com nossas protagonistas, e descreve nossas ruas, com nossa língua. É um livro escrito com sotaque, com as palavras escritas do jeito que falamos. Uma afirmação de existência.

O seu projeto de escrita é superambicioso não só no sentido temático, mas também no de gênero. Você passa por tudo, poema, conto, prosa. Como é o seu processo criativo? Como você se abastece de referências para conseguir não só enredo, mas segurança na forma?

Sinceramente, só me sinto livre para fazer o que eu quiser quando eu quiser. Escrever o que me vier de mais sincero naquele momento da vida. E eu não me sinto muito segura na forma, exceto quando me sinto. Os momentos em que estou mais confiante são quando percebo que há um significado para aquela escolha que tomei. Por exemplo, o Redemoinho em dia quente. Eu me sinto muito feliz com minha escolha de escrever o livro com sotaque. Há um motivo para essa escolha estética, eu nunca li nada assim antes, representa toda uma questão de valorização linguística do Cariri, essa é a minha voz. Percebe como tenho colunas segurando a estrutura? Estou em paz com meu estilo. Acho então que a questão é estar consciente da própria escrita. Por isso que repito tanto que escrever não é um dom, não bate uma inspiração com uma iluminação especial. Eu falo que é um processo de insight, você vai juntando referências, pedaços de uma imagem, até que ela se forma inteira, e foi seu cérebro trabalhando o tempo todo com seu desejo de criar e as referências a sua volta. Faz parte do meu processo ver séries, filmes, ouvir música, conversar com as pessoas, jogar videogame, passear com meu cachorro, me desesperar olhando pro teto, escrever um monte de coisa que parece inútil. Tudo está mexendo e a imagem está lá se completando. Eu não tenho rotina, viajo muito para eventos, escrevo nos espaços de tempo. Aprendi a respeitar esses caminhos. Também aprendi que me sentir desconfortável é o motivo por que escrevo, então trabalho para que o desconforto seja uma peça da minha criação.

Há um movimento cada vez maior de autores e autoras crescidos em condições periféricas. É justo dizer que estamos assistindo ao desabrochar de uma nova literatura brasileira ou ainda é muito cedo? O que você espera ver na literatura nos próximos anos?

Acho que há muitas periferias na literatura. Há situações complexas, também muito positivas, outras ainda péssimas. Mas eu vejo movimento e acho isso importantíssimo. Quando a gente se mexe é ótimo. Não posso dizer que temos uma nova literatura brasileira, mas acho que deve ter gente já dando uma conversada sobre isso nas universidades. O que eu sei com certeza é que desejo ver muita criatividade na literatura brasileira. E pra que a literatura seja criativa, ela precisa ser cheia de narrativas variadas, cenários variados, autoras e autores variados, com linguagens variadas e olhares variados. É lindo quando a gente entende a criatividade desse jeito.

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