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Entrevista: Julián Fuks e “Primavera num espelho partido”

Julián Fuks Share this post

Romancista, contista e crítico literário, Julián Fuks foi o curador de fevereiro de 2019 da TAG Curadoria e é um dos mais prestigiados nomes do cenário da literatura do país. Eleito pela revista Granta um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros em 2012, já foi contemplado com prêmios nacionais e internacionais, tais como o Jabuti e o Saramago – estes vencidos por seu mais recente romance, A resistência (2015). Doutor em Literatura pela USP, foi repórter da Folha de S. Paulo e resenhista da revista Cult, além de publicar contos em revistas e artigos para diversos periódicos.

Em entrevista à TAG, Fuks fala sobre as temáticas que aborda na própria obra e sobre o livro Primavera num espelho partido, do uruguaio Mario Benedetti, escolhido por ele para as caixinhas da TAG Curadoria.

TAG – Primavera num espelho partido é uma história que aborda temas sensíveis, principalmente para pessoas que se relacionam de maneira mais próxima com a temática da ditadura. Como foi ler o livro pela primeira vez? Como o conheceu?

Julián Fuks – Conheço há tempos a escrita de Mario Benedetti, sempre fui um apreciador de seu lirismo e sua sensibilidade. Este livro, no entanto, veio cair nas minhas mãos de maneira inesperada, enquanto escrevia minha própria história sobre repressão, infância e exílio. Foi um mergulho súbito e sem volta na realidade de seus personagens tão tangíveis, na riqueza de vozes tão convincentes, tão comoventes também. Enquanto lia, tentava aprender algo da sua habilidade em cadenciar o enredo, em ir oferecendo sempre um elemento a mais da história, sem perder a capacidade de nos tocar com suas reflexões certeiras e bem delineadas. Quando voltei ao meu próprio livro, tudo o que eu queria era que aquilo me contagiasse e eu conseguisse criar uma atmosfera semelhante de precisão e encantamento.

Em relação à personagem Beatriz, percebemos o exílio pela ótica de uma criança exilada. Você também vivenciou esta experiência. No que ela difere do exílio vivido por um adulto?

Fuks – É curioso, entre as múltiplas identificações que senti ao ler o livro, nunca tinha pensado que meu olhar e minha trajetória pudessem ser semelhantes aos de Beatriz. Mas sim, você tem toda razão, algo da minha experiência de exílio teve a ver com essa de Beatriz: receber um exílio como herança e não saber de partida o que ele significa, estar questionando o tempo todo os sentidos daquela insensatez que toma a vida dos adultos. O exílio vem, então, sem certezas prévias, sem prerrogativas. O exílio pode ser ao mesmo tempo alegre e triste, território seguro em meio a uma vastidão de incertezas. Vou ter que ler o livro mais uma vez agora, para ver o que Beatriz, essa personagem linda, me sussurra nos ouvidos também sobre mim.

Em A resistência, você aborda o exílio sob a perspectiva das relações familiares. Como você enxerga a sua própria trajetória como um vetor que impulsionou a sua escolha por trabalhar esse tema? Como foi essa experiência de escrita?

Fuks – Desde a primeira linha que escrevi de A resistência, senti um forte compromisso com o real, com a memória, com os fatos passados, com personagens de carne e osso que me cercavam. Por mais que eu dissesse a mim mesmo que aquele era um terreno ficcional e eu devia ser livre para inventar, esse apego ao real foi transformando a história que eu tinha para contar e deixando marcas profundas no livro. Me senti tomado por algo que não costuma ser visto como virtude literária, mas que se tornou o impulso principal da minha escrita: a sinceridade. Meu livro, portanto, está todo impregnado da minha trajetória e da trajetória dos meus irmãos e dos meus pais.

Quais são os seus projetos de escrita para o futuro? Quais outras temáticas gostaria de abordar em seus próximos livros?

Fuks – Tenho escrito agora um romance intitulado A ocupação, guardando evidente relação com A resistência, formando com ele um díptico que tenta dar corpo literário a duas das palavras de ordem fundamentais do presente, “ocupar e resistir”. Como no livro anterior, o título deve ser compreendido em seus sentidos mais abrangentes: falo de uma ocupação de sem-teto no centro de São Paulo, mas também do corpo ocupado de uma mulher grávida, de outro corpo, ocupado pela doença, e das transformações que sofre o próprio exercício da escrita quando convertido em ocupação. Em última instância, traz a ideia de que, assim como praças, ruas, universidades, edifícios abandonados, também a própria literatura pode e deve ser ocupada. É o que nos pede este presente tão grave: que abdiquemos de purismos e deixemos nossa linguagem ser tomada pela urgência de uma reação, de uma ação, de uma resposta.

A autoficção é um tema recorrente para sua escrita. Quais as fronteiras impostas pela realidade quando falamos em temas tão delicados como ditadura e repressão?

Fuks – A autoficção tem ganhado destaque, a meu ver, justamente por promover uma travessia de fronteiras, por não seguir regras estritas, por não se deixar conter. Assim, nenhuma fronteira imposta ao exercício da autoficção há de resistir, acredito. Mas, sim, assuntos tão graves quanto ditadura e repressão sem dúvida nos exigem certa delicadeza e sensibilidade. Estamos lidando não apenas com o trauma histórico, mas com profundas dores pessoais e com desconhecimentos e divergências de olhares. Nesse aspecto, a esse tipo específico de autoficção que lida com as memórias sociais talvez não seja tão proveitosa a concepção da literatura como jogo, como brincadeira sagaz, mas sim um senso de responsabilidade e de precisão na atenção ao real.

Em artigo publicado no The Guardian, após as eleições de 2018, você afirma que “Esses serão anos para escrever como nunca antes”. Como você acha que a repressão acaba impulsionando movimentos artísticos?

Fuks – Nenhum tipo de repressão jamais será positivo ou desejável, seu impacto é sempre atroz, mas a boa notícia é que, quando se trata de arte e literatura, os repressores nunca alcançam o que desejam. Podem tentar estrangular a produção artística, podem tentar calar ou alijar artistas, mas nunca conseguirão estancar a criação e a cultura – elementos indiscerníveis da própria noção de humanidade. Assim, a resposta mais eficaz a esse quadro nefasto que enfrentamos, a essa sanha disseminada de cerceamento e censura, talvez seja simplesmente continuar escrevendo, continuar produzindo. Escapar do desalento e da apatia e nos manter vivos, ativos, em íntimo contato com a humanidade que nos habita.

Em outra entrevista, você comentou sobre as potencialidades e perigos das redes sociais em tempos de pós-verdade. A respeito do tema, a TAG possui um aplicativo onde os associados estabelecem discussões sobre os livros enviados. Que tipo de discussão você acredita que Primavera num espelho partido poderá suscitar?

Fuks – É um livro tão múltiplo, tão vasto, tão profundo em sua simplicidade que fica até difícil prever os muitos debates que pode suscitar. Eu sugeriria atentar para as muitas maneiras como a violência e a repressão vão incidindo na vida das diferentes pessoas, mais atuantes ou menos, vítimas diretas ou indiretas, em tantas fases diferentes da existência. Como incidem sobre os destinos, as ações, os amores. E como o que é humano sempre resiste, a maneira como a união e a compreensão entre as pessoas sobrepuja o horror e o autoritarismo. A vida encontra seu caminho mesmo na intempérie. Mas, claro, as discussões entre tantos leitores entusiasmados sem dúvida encontrarão outros destinos, outros caminhos, outros amores.

O que você gostaria de falar aos mais de 25 mil associados que lerão esse livro pela primeira vez? Que outros títulos indicaria para quem gostou do livro?

Fuks – Diria só para que entrem no livro com olhos semelhantes aos de Beatriz, sem certezas prévias, sem prerrogativas. A boa literatura política não é dogmática, não é panfletária, é apenas uma reflexão sobre como a esfera política incide na existência dos indivíduos. Há uma vasta literatura feita dessa maneira, sobretudo na América Latina. Convido essa grande família de leitores a conhecer a história de outras famílias latino-americanas pelos livros de Martín Kohan, Patricio Pron, Laura Alcoba, Lina Meruane, Andrés Neuman, Carla Maliandi, Félix Bruzzone, ou ainda, no Brasil, Carola Saavedra, Paloma Vidal, Tatiana Salem Levy, Javier Arancibia Contreras, entre muitos outros. Há um sem-número de autores e autoras explorando os meandros da memória pessoal e produzindo uma literatura ao mesmo tempo pujante e sensível.

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