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Indicações de livros

Resenha crítica de Antonio Candido

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Texto retirado de O discurso e a cidade, de Antonio Candido, publicado pela primeira vez em 1993 pela editora Duas Cidades.

Il deserto dei tartari (1940), de Dino Buzzati, conta a história de um jovem oficial, Giovanni Drogo, destacado ao sair da Escola Militar para a Fortaleza Bastiani, situada na fronteira com um reino setentrional. Para além dela se estende uma planície imensa, o Deserto dos Tartaros, de onde desde séculos não vem sinal de vida. De tal modo que a guarnição parece inútil, pela ausência de inimigos visíveis ou mesmo prováveis. Mas há a ilusão de um perigo virtual e constante, que poderia causar a guerra e dar aos oficiais e soldados a oportunidade de mostrarem o seu valor. Por isso vivem todos numa expectativa permanente, que ao mesmo tempo é esperança –, a esperança de poder um dia justificar a vida e ter ocasião de brilhar.

A narrativa se organiza ostensivamente em trinta capítulos mas a sua razão, manifestando a estrutura profunda, parece exprimir-se por um movimento em quatro tempos, gerando quatro segmentos que podem ser denominados segundo os seus temas básicos: incorporação à Fortaleza (caps. I-X); primeiro jogo da esperança e da morte (caps. XI-XV); tentativa de desincorporação (caps. XVI-XXII); segundo jogo da esperança e da morte (caps. XXIII-XXX).

De tudo se desprende uma visão paradoxal e desencantada, expressa numa linguagem econômica, severa, recobrindo o pessimismo melancólico do entrecho. Buzzati, que noutros escritos manipula o humor com tanto engenho, não teve medo de assumir aqui o modo sério em estado de pureza, para revestir com ele a austeridade heroica do protagonista, destinado a só ganhar a vida, na hora da morte, depois de gastá-la no limiar fantástico do Deserto dos Tartaros. Lá, o tempo se esvaiu para ele na Fortaleza enorme, estirada de escarpa a escarpa, fechando o mundo numa paragem de pedra antecedida por montanhas e desfiladeiros, cercada de penhascos, sucedida pela estepe. Tudo vazio, tudo segregado, como palco solitário onde se agitam homens possuídos por um impossível sonho de glória.

  1. Incorporação à Fortaleza

Logo no começo do livro, chama atenção a maneira pela qual a Fortaleza é por assim dizer desligada do mundo. Drogo “não sabia sequer onde ficava exatamente. Um dia a cavalo, segundo uns, menos, segundo outros, mas na verdade ninguém tinha estado lá”. O amigo que o acompanha por alguns quilômetros, Francesco Vescovi, mostra-lhe o topo de um morro distante, que conhecia por ter caçado naquelas bandas, dizendo que é onde ela fica. Portanto, a cavalgada não seria longa. Mas não apenas Drogo perde o morro de vista, como ao fim de certo tempo um carroceiro informa nunca ter ouvido falar de fortaleza por ali. Ao cair da noite chega a uma edificação que lhe parece, mas não é, a do seu destino: era um forte abandonado, e dele se avistava no mais remoto horizonte de serras o perfil da Bastiani, “quase inacessível, separada do mundo”. A seguir ela some de vista e Giovanni dorme ao relento, para só alcançá-la no dia seguinte,  depois de muitas horas, na companhia do capitão Ortiz, que encontrara no caminho e informa ser aquele imposto secundário em setor perdido da fronteira; nunca participou de guerras e parece não servir para nada.

O primeiro segmento dominado pela entrada e permanência do tenente Giovanni Drogo na Fortaleza Bastiani, começa por essa jornada estranha à busca de um local fugidio e é regido por ambiguidades, a primeira das quais é que, chegando lá, fica sabendo que foi mandado para um posto aonde se ia a pedido (o tempo de serviço era contado em dobro). Esta circunstância o contraria, ele não gosta do lugar e decide voltar sem demora. Mas para facilitar os trâmites, e por causa de um atrativo inexprimível, concorda em esperar quatro meses, durante os quais vai ficando preso pelo fascínio que amarra oficiais e praças ao serviço monótono do forte. Por isso, no momento de assinar o pedido de retorno decide bruscamente ficar por dois anos. A incorporação vai se processando como efeito, tanto das condições locais (o Forte o atrai misteriosamente), quanto de impulsos arraigados, mas ele não sabe ainda que está preso ao lugar e nunca mais poderá desprender-se. Isso produz em relação à vida anterior um movimento de ruptura, cujos indícios vão aparecendo aos poucos, como se a narrativa fosse um terreno minado por eles.

Aliás, já durante a caminhada que o levou pela primeira vez à Fortaleza ele começara a sentir-se desligado da existência que tivera até então e agora vai parecendo algo estranho. Percebe-se isto inclusive pelo desacerto simbólico entre o passo de seu cavalo e o do amigo Francesco Vescovi. É preciso ter em mente esse processo subterrâneo para sentir por que, no momento em que poderia voltar, antes mesmo de entrar em serviço, ele aceita a sugestão do médico para esperar quatro meses. Olhando pela janela do consultório um pedaço de rocha, é tomado pelo “vago sentimento que não conseguia decifrar e insinuava-se em sua alma; talvez algo tolo e absurdo, uma sugestão sem nexo”. Pouco a diante imagina que talvez ela viesse de dentro dele próprio, como “força desconhecida”.

Vemos então que o Forte (que pode ser alegoria da vida) é um modo de ser e de viver, que prende os que têm a natureza idealista e ansiosa de Drogo; os que traduzem a própria situação como longa espera do momento glorioso e único onde tudo se justifica e o tempo é redimido. Desde o coronel comandante, chamado Filimore, até o alfaiate-chefe, sargento Prosdoscimo, todos manifestam uma ambiguidade que os leva a afirmar que querem ir embora, e ao mesmo tempo desejam ficar para estarem a postos quando vier a hora esperada. Os anos passam, talvez os séculos, e nada acontece, sendo até possível que nunca tenham existidos os tártaros ao norte.

Coisas como estas vão configurando a mencionada ruptura com o mundo anterior. Ela é reforçada por meio da lei suprema da Fortaleza, a rotina de serviço traçada pelo regulamento, que funciona como sugestão de vida, isto é, modelo proposto como norma de comportamento. A rotina organiza o tempo de cada um e de todos de modo uniforme, padronizando não apenas os atos, mas os sentimentos, aos quais parece querer substituir-se. Ela é a “obra-prima insana” criada pelo “formalismo militar”, gerando uma atitude coletiva que parece condicionada pela guerra iminente. Mas como esta nunca vem, ela gira em falso no vácuo anódino que tem sido por séculos a vida na Fortaleza, onde o rigor das sentinelas, dos turnos de guarda, das senhas e contra-senhas se organiza em relação a nada. A rotina de serviço equivale a uma paralização do ser e a um congelamento da conduta, contrastando com o ideal de todos, que é o movimento, a variedade, a surpresa da guerra = aventura. Aparecendo como condição desta, a rotina forma com ela um par contraditório e ambíguo.

Ao organizar o tempo a rotina o reduz a um eterno presente, sempre igual, enquanto a aventura é um modo de abri-lo para o futuro desejado. Por isso a vida na Fortaleza é em parte um drama do tempo, que nela parece vazar, no sentido em que a água vaza de um cano, perdendo-se inutilmente. Drogo sente a sua “fuga irreparável”, pois de fato na Fortaleza o presente é uma espécie de prolongamento do passado, já que ambos são igualados pela rotina que petrifica. Daí a ânsia de futuro (que tornaria possível movimento e transformação), através da aventura da guerra, que no entanto nunca vem. Individualmente o problema de Drogo pode ser definido como substituição de passados. Ele não pode voltar ao seu próprio, isto é, não pode continuar o tipo de vida que levava na cidade e agora ficou para trás de uma vez. Por isso sente desde o começo da vida de guarnição que lhe fecharam nas costas um “portão pesado”. Só lhe resta, pois, assumir o passado do Forte, renunciando ao seu e esperando pelo futuro, que por sua vez é devorado pela rotina do serviço sempre igual, como se o tempo não existisse. Um dos núcleos do livro se define no capítulo VI, que de certo modo prefigura o destino de Drogo: inconsciência em relação ao presente, que o empurra para o passado da Fortaleza (a fim de que o presente seja igual ao que foi o passado desta); e ilusão em face do futuro. Como a única realidade acaba sendo reduzir tudo a passado, pois o futuro nunca se configura, surge o desencanto. A Fortaleza é o portão fechado atrás de cada um, que mata o presente ao reduzi-lo a um passado que não é o individual, mas o que foi imposto, e ao propor como saída um falso futuro.

Os oficiais se apegam então a esta saída única e duvidosa, sob o acicate da esperança, que se torna uma espécie de doença. Todos esperam o grande acontecimento, vítimas de uma ilusão comum alimentada pela perspectiva da vinda dos tártaros imponderáveis.

Drogo percebe isso tudo e pensa aliviado que tais ilusões não tomarão conta dele, pois a sua estadia será de quatro meses. O que não sabe é que também ele já está contaminado, preso misteriosamente na teia. O velho ajudante do alfaiate lê isso nos seus olhos e o aconselha a ir embora o quanto antes. Mas ele é um terreno minado, embora se sinta ingenuamente livre da ilusão comum, que domina a Fortaleza e se exprime entre outros num trecho do capítulo VII:

Do deserto setentrional devia chegar a sua sorte, a aventura, a hora milagrosa que toca pelo menos uma vez a cada um. Por causa dessa vaga eventualidade, que parecia ficar cada vez mais incerta com o passar do tempo, os homens feitos consumiam naquela altura a melhor parte da vida.

Não se haviam adaptado à existência comum, às alegrias da gente banal, ao destino mediano; lado a lado, viviam na esperança de todos sem nunca aludirem a ela, porque não se davam conta ou simplesmente porque eram soldados, com o cioso pudor da própria alma.

Dessa combinação de aventura e rotina, conformismo e aspiração, imobilidade e movimento, vai nascendo em Drogo o novo ser. Quando acabam os quatro meses e o médico está preparando o atestado que o desligará, ele se sente preso ao Forte, cuja beleza lhe aparece de repente em contraste com o cinza da cidade. Então decide ficar. Tão poderoso quanto o apelo da aventura possível, agiu nele o visgo quotidiano da rotina, agiram os hábitos adquiridos. Aventura e rotina se confundem no ritmo próprio da vida militar, formando para Drogo uma segunda natureza, de acordo com a qual a Fortaleza é menos um lugar de o que um estado de espírito.

  1. O primeiro jogo da esperança e da morte

No primeiro segmento do romance a ação dura quatro meses. No segundo ela começa dois anos depois e dura dois anos mais. Drogo está realmente incorporado à Fortaleza, não apenas no sentido militar, mas no sentido de haver interiorizado tudo o que caracteriza a vida nela: rotina, lazer, a redefinição do tempo –, voltados para a esperança, a expectativa do grande momento. A partir de agora vai entrar em contacto com a outra realidade que complementa a primeira, mas permanecia oculta: a morte. O segundo movimento do livro é o jogo da esperança e da morte, que vão assumir realidade concreta.

Certa noite em que está no comando do Reduto Novo, posto avançado que descortina o deserto, surge deste um cavalo perdido. Uma das sentinelas, o soldado Lazzari acha que é o seu, escapado não se sabe como, e consegue burlar a vigilância no momento de rendição da guarda para ir capturá-lo. O resultado é que ao voltar, tendo mudado a senha, não sabe dar a resposta adequada e, apesar de reconhecido por todos, apesar de seus apelos angustiados, é morto por um amigo de sentinela, em obediência à norma inflexível do regulamento.

No entanto, o cavalo devia ter fugido de uma tropa do país vizinho, porque dias depois contingentes e minúsculos começam a marchar no rumo da Fortaleza. Isto cria uma excitação belicosa, todos se preparam para a guerra afinal possível, o comandante está a ponto de falar sobre ela à oficialidade reunida em alta tensão emocional, quando chega um mensageiro do Estado Maior, anunciando que é só uma tropa encarregada de terminar o trabalho havia muito abandonado de demarcação da fronteira.

Deste modo o sonho se desfaz, restando apenas a tentativa de ser mais rápido e eficiente na colocação dos marcos divisórios. Para isso é mandado à crista dos morros um destacamento comandado pelo capitão Monti, homem enorme e vulgar, tendo como imediato o aristocrático e um pouco remoto tenente. Angustina, que além de frágil e adoentado vai com botas normais de montaria, em vez de botinas ferradas que os outros calçam, próprias para escalar. Por isso, a ascensão é para ele um sacrifício incrível, agravado pela crueldade do capitão, que força a marcha e procura veredas difíceis a fim de aumentar o seu tormento. Mas Angustina resiste e não fica atrás, mantendo o ritmo e a eficácia com incrível força de vontade. Chegando quase ao alto, o destacamento verifica que foi antecipado pelos estrangeiros e que estes plantaram os marcos com vantagem para o seu país. A escuridão baixa, a neve cai, faz um frio dos diabos e os do Forte, abrigados numa reentrância da rocha, se dispõem a passar mal a noite, ainda mais sob a caçoada dos estrangeiros, instalados pouco acima, na crista do morro, de onde oferecem ajuda com sarcasmo jovial. Expostos ao tempo, os dois oficiais jogam baralho para dar impressão de moral alta; mas o capitão Monti acaba por desistir e se abrigar com os soldados, enquanto Angustina, ao relento, debaixo da nevada, continua sozinho a manejar as cartas e anunciar os pontos, para dar aos de cima um espetáculo de desafogo e firmeza. Assim faz até morrer enregelado, sob as vistas atônitas de Monti, que compreende afinal a grandeza estóica do seu sacrifício.

Os casos do soldado Lazzari e do tenente Angustina mostram o contraste entre a morte sonhada e a morte real. No sonho, sobretudo no devaneio, os oficiais imaginam (como Drogo) o fragor da batalha, a situação desesperada resolvida pelo heroísmo, as feridas gloriosas. Quando anunciam, por exemplo, que o contingente estrangeiro se aproxima através do deserto, o coronel comandante, lutando embora contra a lembrança das frustrações passadas, acaba acreditando na guerra iminente e vê “chegar a sorte com a armadura de prata e a espata tinta de sangue”. Numa sala do Forte há um quadro antigo representando o fim heroico do príncipe Sebastião encostado numa árvore com a brilhante armadura e ao lado a espada rota. Esta é a morte ideal, que justifica a esperança.

As mortes reais são diferentes. Acidentais, obscuras, elas contrastam com o fulgor dos sonhos, mas têm papel importante na economia do livro. A de Lazzari, porque encarna o limite de tragédia a que podia chegar a rotina, isto é, a lei da Fortaleza. A de Angustina (que nos interessa mais), porque terá função decisiva na formação do significado final. Por isso ela é cuidadosamente preparada, sendo precedida por um sonho premonitório, onde Giovanni Drogo vê o colega, ainda menino, arrebatado por um cortejo de duendes e fadas, pequeno morto flutuando no espaço. A importância da morte de Angustina está no contraste que forma com o devaneio da morte espetacular, pois mostra que pode haver grandeza num fim igual ao dele, durante uma mesquinha expedição pacífica, sem moldura heroica nem situação excepcional. Portanto (verificação decisiva para compreender o livro), o heroísmo depende da pessoa, não da circunstância, e os grandes feitos podem ocorrer sem as marcas convencionais de identificação. Como diz o major Ortiz, comentando o fim de Angustina: “Afinal de contas, o que nos cabe é o que merecemos”. Em consequência, por que esperar a hora que não chega? Ortiz aconselha Drogo a deixar a Fortaleza antes que fosse tarde, como já era para ele que não tencionava mais ir embora antes de reformado. Drogo decide então descer à cidade para solicitar transferência.

  1. Tentativa de desincorporação

O terceiro segmento narrativo é ocupado pela tentativa de desincorporação. O segmento anterior descrevera fracassos que atingiram toda a guarnição, frustrada na sua esperança de guerra e ferida na sua integridade pela morte de dois membros, o oficial e o soldado. Este segmento descreverá diretamente os fracassos individuais de Drogo, que, munido de uma recomendação obtida pela mãe, tenta transferir-se. Assim como o segundo segmento tinha duas sequencias centrais –, a morte de Lazzari e a de Angustina –, este tem igualmente duas sequências básicas: a entrevista com a antiga namorada, Maria Vescovi, e a entrevista com o general.

O encontro com Maria é um jogo de hesitações, impulsos reprimidos, intenções abafadas, tudo numa espécie de ambiguidade sem saída. No ambiente composto da sala de visitas, numa conversa regida pela etiqueta, os dois jovens gostariam no fundo de declarar o seu afeto, mas não declaram. Cada um quereria fazer sentir ao outro que está na dependência de uma decisão sua, mas ambos se contêm. Parecem o tempo todo, enquanto a tarde escoa, esperar do parceiro algum movimento que não vem. Assim, a oportunidade se desfaz por culpa de ambos, sem que nenhum queira isso e sem que também queira outra coisa. Drogo parece atacado por um jogo impossível de diz-e-não-diz, de quer-e-não-quer. No fim se despedem com uma “cordialidade exagerada” e ele vai embora “com os passos marciais rumo ao portão de entrada, fazendo ranger no silêncio o saibro da alameda”.

A entrevista com o comandante da divisão é uma comédia de equívocos, marcada pelo esfriamento progressivo da cordialidade postiça que o general assumira no início, empertigado atrás do seu monóculo meio insolente. Drogo passara quatro anos no Forte e isto lhe dava um direito tácito à remoção. Mas acontece que tinha havido no regulamento certa mudança de que não soubera e segundo a qual deveria ter feito requerimento prévio, fato que os colegas interessados na própria remoção lhe haviam ocultado. Além do mais, a sua folha trazia uma “advertência” por causa da morte acidental do soldado Lazzari sob o seu comando. Embora estivesse prevista uma redução considerável do contingente, o seu pedido não é satisfeito. Sentindo-se enganado pelos colegas, injustiçado pelo comando, Drogo mergulha na decepção.

No entanto, a leitura atenta mostra que não é apenas esta a causa de sua volta ao Forte. Logo que chegou à cidade, sentiu que não pertencia mais àquele mundo da casa, da família, dos amigos, onde sua própria mãe tinha agora outros interesses. Mas se tudo lhe pareceu estranho, foi porque já estava preso ao Forte e manipulava inconscientemente o destino para ficar nele, sob a ação convergente de uma força externa, que o mandava de volta, e outra interna: o sentimento de desincorporação acaba portanto confirmando o seu vínculo irremediável com a Fortaleza. Ele sobe de novo a serra com melancolia e se recolhe à espera inútil.

Até aqui passaram quatro anos da vida de Drogo e cerca de dois terços do livro; daqui até o fim, isto é, em pouco menos de um terço do número de páginas, transcorrerá o tempo de uma geração. É que os dados essenciais estão lançados e só falta mostrar as suas combinações finais.

  1. O segundo jogo da esperança e da morte

Os episódios do terceiro segmento duraram o curto lapso de uma licença. No quarto segmento a vida de Drogo vai sendo narrada em sequências separadas por largos intervalos, num total de quase trinta anos, durante os quais a esperança e a morte se entrelaçam mais do que nunca ao ritmo do tempo, que corre ora rápido, ora lento, e afinal para de uma vez.

O relato começa com a partida de metade da guarnição deixando semideserta a Fortaleza onde parecem ter ficado os esquecidos. Mas eis que uma noite o tenente Simeoni, dono de poderoso óculo de alcance, chama Drogo para mostrar vagos pontos luminosos movimentando-se no limite mais remoto do deserto, onde a vista se perde numa barreira de névoa constante. E aí começa para ambos uma fase de expectativa acesa, pois Simeoni percebe tratar-se da construção de uma estrada. A ansiedade dos dois rapazes, debruçados sempre que podem no parapeito para sondar a imensidão, dá ao ritmo narrativo uma lentidão que corresponde à impaciência sôfrega. Mas o comando, escaldado com o falso alarme de dois anos antes, proíbe o uso de tais lunetas e Simeoni se retrai, ficando apenas Drogo como uma espécie de depositário isolado da velha esperança secular, que virou um estado forte de sua alma. Entrementes, a atividade dos estrangeiros fica visível a olho nu, mostrando que é de fato a construção de uma estrada. Mas os trabalhos demoram muito, a expectativa é sempre a mesma e Drogo sente que agora o tempo é corrosivo, arruinando o Forte, envelhecendo os homens, arrastando tudo numa espécie de fuga inexorável. Sacudido entre um ritmo de progresso (a duração dos trabalhos em andamento) e um ritmo de regresso (a ruína incessante do lugar e dos homens), ele continua esperando o grande momento.

Assim passam quinze anos, registrados nalgumas linhas, antes de acabar a construção da via pavimentada. Os morros e os campos são os mesmos, mas o Forte está decaído e os homens, mudados. Drogo foi promovido a capitão e a fase final começa por uma réplica do começo: nós o vemos subir a serra depois de uma licença, quarentão, definitivamente estranho na sua cidade, onde a mãe já morreu e os irmãos não moram mais. No começo do livro o jovem tenente Drogo, subindo a montanha misteriosa, vira o capitão Ortiz do outro lado do precipício e o chamara com ansiedade juvenil. Agora, o capitão Drogo sobre cansado e do outro lado chama-o do mesmo modo o jovem tenente Moro. A recorrência do tempo é marcada pela igualdade das situações, expressa na rima toante dos sobrenomes que parecem igualar-se: Drogo-Moro. As gerações se substituem, o tempo corre, a Fortaleza continua à espera do seu destino.

No capítulo seguinte passaram mais dez anos, Drogo é major subcomandante, está com 54 anos, doente, acabado, sem forças para levantar da cama. E então acontece o inverossímil, que era todavia o esperado: do deserto vêm vindo fortes batalhões inimigos, com artilharia e tudo, em marcha de guerra. Finalmente, depois de séculos, parece chegar o grande momento. O Estado-Maior manda reforços, começa uma exaltante movimentação belicosa de véspera de combate, Drogo, quase inválido, se alvoroça com a perspectiva do ideal realizado, mas o comandante, tenente-coronel Simeoni, força-o a partir, porque precisa do seu velho quarto espaçoso para alojar os oficiais da tropa de reforço que está chegando. Desesperado, trôpego, com o corpo sobrando dentro do uniforme, ele faz de volta a estrada do vale, descendo-a numa carruagem enquanto as tropas sobem para o combate.

No caminho resolve dormir numa hospedaria, amargurado pela ironia incrível da sorte, que o fez perder a vida inteira na Fortaleza e ser posto fora dela quando chegou a hora esperada. Este final de livro é escrito com firmeza leve, cheia de precisão e mistério, manifestando a convergência dos grandes temas do romance: a Esperança, a Morte, o Tempo que as modula e combina.

É uma tarde encantadora de primavera, com perfume de flores, céu macio e os morros cor de violeta perdendo-se na altura. Sentado no quarto pobre, Drogo está a ponto de romper no pranto por causa de sua vida nula, coroada por essa deserção forçada, quando percebe que vai morrer. Então, compreende que a Morte era a grande aventura esperada, não havendo por que lamentar que tenha vindo assim, obscura, solitária, aparentemente a mais insignificante e frustradora. O Tempo parece estacar, como se a fuga para a decepção constante tivesse esbarrado afinal numa plenitude –, que é a consciência de enfrentar com firmeza e tranquilidade o momento supremo da vida de todo homem. A batalha de agora lhe parece então mais dura do que as outras com que sonhava, e mais nobre do que a travada por Angustina sob as vistas do capitão Monti e dos soldados. Ele não tem testemunhas, está absolutamente só, não pode mostrar a ninguém a fibra do seu caráter e a disposição com que morre. Por isso mesmo esta morte se revela mais nobre que as das batalhas. E o Tempo, que pareceu perdido durante a vida, surge ao cabo como ganho completo. O Tempo é redimido e a Morte encerra o seu longo jogo com a Esperança. Eis as linhas finais:

O quarto está cheio de escuridão, só com muito esforço é possível distinguir a brancura da cama e o resto é inteiramente preto. Dali a pouco a lua devia aparecer.

Será que Drogo vai ter tempo de vê-la, ou precisará ir embora antes? A porta do quadro freme com um rangido tênue. Talvez seja um sopro de vento, um simples remoinho de ar dessas noites de primavera. Talvez seja ela que entrou com andar silencioso, aproximando-se agora da poltrona de Drogo. Fazendo esforço, Giovanni endireita um pouco o busto, ajeita com uma das mãos a gola do uniforme, dá uma olhada fora da janela, uma olhada muito breve, para o seu quinhão de estrelas. Depois, embora ninguém possa vê-lo no escuro, sorri.

  1. Definições

O deserto dos tártaros pertence à lista dos romances do desencanto, que contam como a vida só traz coisas frustradoras e acaba no balaço negativo dos grandes déficits. No entanto (ao contrário de certos finais, terríveis, como o das Memórias póstumas de Brás Cubas), seu desfecho é um caso paradoxal de triunfo na derrota, de plenitude extraída da privação. Isto confirma que é um livro de ambiguidades em vários planos, a começar pelo caráter indefinível do espaço e da época.

Onde decorre a ação? Num país sem nome, impossível de localizar, como nos contos populares, a despeito do corte europeu dos usos e costumes, assim como do substrato italiano – sendo que a única referência geográfica precisa é, ocasionalmente, à Holanda (e suas tulipas), aonde a namorada de Drogo anuncia que vai passear. Aliás, de certo modo nem há lugar propriamente dito, mas apenas uma vaga cidade sem corpo e o sítio fantasmal da Fortaleza Bastiani, que fica a uma distância elástica, ninguém sabe direito onde.

O nome dela é italiano, e quanto ao sobrenome das pessoas, alguns poucos são usuais nesta língua, como Martini, Pietri, Lazzari, Santi, Moro. Mas há preferência pelos menos frequentes, como Lagòrio, Andronico, Consalvi; ou raros, como Batta, Prosdoscimo, Stizione, e pelos que parecem inventados a partir de outros, como Drogo, de Drago; Fonzaso, de Fonso ou Fonsato; Angustina, de Agostino; Stazzi, de Stasi. Significativo é o caso da derivação que leva o nome para outras línguas, como Morei (francês), que pode ter Morelli como ponto de partida; ou Espina (espanhol), parecido com Spina; ou Magnus (forma latina ao gosto da onomástica alemã), com Magni ou Magno. No limite, os puramente estrangeiros: Fernandez, Ortiz, Zimmermann, Tronk, enquanto o do comandante, Filimore, parece não pertencer a língua nenhuma. Esse jogo antroponímico contribui para dissolver a identidade possível do vago universo onde se situa a Fortaleza.

Mais ainda para além dela há um deserto onde andam nômades, o que poderia sugerir a África ou a Ásia. Os supostos tártaros, que talvez nunca tenham existido, estariam ao Norte, mas as tropas que vêm de lá para colocar os marcos divisórios parecem da mesma natureza e grau e civilização que as da Fortaleza. Quem são na verdade os inimigos esperados? Tártaros, só a Rússia os teve como vizinhas na Europa. Note-se a propósito que o médico militar usa gorro de pele, à maneira russa, e os reis do país se chamam Pedro, como (excluído o caso de um da Sérvia no começo deste século) só os houve na Rússia e em Portugal. O nome do príncipe heroico representado moribundo num quadro é Sebastião, igual ao do rei português morto heroicamente em Alcacer-Quebir

E a época? As pessoas andam a cavalo e de carro, havendo mais para o fim referência a estrada de ferro. No entanto, ainda existem carruagens douradas, o que puxa para o século XVIII. O óculo de alcance é a luneta de um só canhão, indicando que ainda não havia binóculos. Os fuzis não têm repetição e são carregados de modo arcaico, puxando pelo menos para o meado do século XIX. Quer dizer que são tomadas cautelas para desmanchar também a cronologia, inclusive porque não  há sinal de mudança nas armas, uniformes, objetos ao longo de uma ação que dura mais de trinta anos. E há outros indícios de baralhamento, como o fato de a guarnição do forte ser (é o que se infere) de infantaria, em que, segundo a norma, só os oficiais tinham cavalos; no entanto, um episódio importante é regido pelo fato de o soldado Lazzari reconhecer o dele, como se se tratasse de cavalaria. Estamos num mundo sem materialidade nem data.

Quanto à composição, vimos que a narrativa parece ordenar-se em quatro segmentos [incorporação à Fortaleza, primeiro jogo da esperança e da morte, tentativa de desincorporação e segundo jogo da esperança e da morte], que se opõem entre si, opondo-se também internamente: incorporação e desincorporação, ilusão e desilusão, esperança e frustração, vida e morte, tempo rápido e tempo vagaroso. Ao logo deles vão brotando os significados parciais, alguns dos quais já vimos, que nos conduzem aos significados gerais. Para captá-los, é preciso comparar as primeiras páginas com as últimas.

O começo diz abertamente que Giovanni Drogo não tinha estima por si mesmo. Ora, o fim consiste na aquisição dessa autoestima que lhe faltava. Durante a vida inteira ele esperou o momento que permitiria uma espécie de revelação do seu ser, de maneira que os outros pudessem reconhecer o seu valor, o que o levaria reconhecê-lo ele próprio. Mas aqui surge a contradição suprema, pois esse momento acaba sendo o da morte. Portanto, é ela que define o seu ser e lhe dá a oportunidade de encontrar justificativa para a própria vida. De algum modo, uma afirmação por meio da suprema negação.

Assim, o romance do desencanto deságua na morte, que aparece como sentido real da vida e alegoria da existência possível de cada um. Como na de todos nós, ela esteve sempre na filigrana da narrativa. Primeiro, sob a forma de alvo ideal, sonhada na escala grandiosa. Depois, como realidade banal, nos casos de Lazzari e Angustina. Quando o tempo para, ela surge e o redime, justificando Drogo, que adquire então a ciência que não aprendera nos longos anos de esperança frustrada e que, se não tivermos medo do tom sentencioso, poderia ser formulada assim: o sentido da vida de cada um está na capacidade de resistir, de enfrentar o destino sem pensar no testemunho dos outros nem no cenário dos atos, mas no modo de ser; a morte desvenda a natureza do ser e justifica a vida.

Por isso O deserto dos tártaros é um romance desligado da história e da sociedade, sem lugar definido nem época certa. Nele não há dimensão política, não há organização social ou crônica de fatos. É um romance do ser fora do tempo e do espaço, sem qualquer intuito realista. Do ponto de vista ético é um livro aristocrático, onde a medida das coisas e o critério de valor é o indivíduo, capaz de se destacar como ente isolado, tirando o significado sobretudo de si mesmo, e por isso podendo realizar na solidão a sua mensagem mais alta. A morte coletiva e teatral dos sonhos militares, desejada como coroamento da vida, cede lugar à glória intransferível da morte solitária, sem testemunhas e sem ação em torno, significando apenas pela sua própria força. E nós lembramos Montaigne, quando diz que “a firmeza na morte é sem dúvida a ação mais notável da vida.”

4.7/5 - (23 avaliações)

1 comment

  • Li “O deserto dos tártartos” há alguns meses atrás. Ao iniciar, não nutria qualquer maior expectativa quanto a seu valor.
    Logo, nas primeiras páginas, percebi que se tratava de esplêndida obra literária. Buzzati
    constrói um romance denso, com narrativa fluída, capaz de prender a quem o lê. Um dos melhores que já tive a oportunidade de ler.

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