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Três Marias e três Joões

Coluna de Sérgio Rodrigues sobre "As três Marias" Coluna "As três Marias" Share this post

Em sua autobiografia, Tantos anos, publicada um ano após sua morte, Rachel de Queiroz conta o episódio de comédia em que, tendo submetido os originais de seu novo romance à cúpula do Partido Comunista, como boa militante recém-filiada, em 1932, foi recebida numa “audiência” sinistra por três altos dirigentes num armazém abandonado do cais do porto, no Rio.

Vivia-se o auge do stalinismo e do “realismo socialista”, que pregava a submissão da arte aos ditames do Partido. O livro era João Miguel, o primeiro que ela escrevia depois do sucesso precoce de O Quinze. A junta de camaradas estava carrancuda. Exigia algumas mudanças na trama.

Conta Rachel: “Por exemplo: uma das heroínas, moça rica, loura, filha de coronel, era uma donzela intocada. Já a outra, de classe inferior, era prostituta. Eu deveria, então, fazer da loura a prostituta e da outra a moça honesta. João Miguel, ‘campesino’, bêbedo, matava outro ‘campesino’. O morto deveria ser João Miguel, e o assassino passaria de ‘campesino’ a patrão”.

A escritora tinha 21 anos. Sentindo-se ameaçada, e não só em sua integridade como artista, agarrou o manuscrito contra o peito e saiu correndo. Deixou o armazém deserto – e o Partido – e continuou a correr tanto que se tornou anticomunista convicta, a ponto de, três décadas mais tarde, apoiar o golpe militar que tinha como pretexto livrar o país da “ameaça vermelha”.

O que esse ridículo episódio de stalinismo de chanchada tem a ver com As três Marias, romance que Rachel de Queiroz publicaria sete anos depois?

Vemos num e no outro a independência artística que a escritora cearense prezava acima de tudo. Mesmo tão jovem, ou quem sabe por isso mesmo, percebia claramente (e não eram muitos os que percebiam, naquele momento endurecido da história) que submeter a criação literária à militância, qualquer militância, é decretar sua morte.

Acredito que não fosse outro o motivo de Rachel ser resistente às tentativas de enquadrar As três Marias como um livro “feminista”.

Sim, o mais claramente autobiográfico de seus romances tem uma inevitável leitura “empoderadora” das mulheres, uma vez que a vida da autora foi um exercício empírico de afirmação de vontade e independência. Como destacou Mário de Andrade, é o olhar feminino que comanda a ordenação do mundo ficcional, numa inversão talvez pouco nítida ao leitor de hoje, mas que àquela altura devia soar nada menos que subversiva para um país machista, hipócrita e careta até a medula.

Se o feminismo literário brasileiro já tivera vozes mais radicais na poeta Gilka Machado e na ensaísta Ercilia Nogueira Cobra, Rachel trazia um corajoso olhar feminino para o mundo repleto de testosterona do romance. E não fazia isso em tom de desafio, mas com a serenidade de uma escritora segura de seu talento. E muito.

Isso posto, o livro, a meu ver, se ressente de um tom excessivamente cronístico e da baixa densidade de quase todos os personagens – não só, como observou Mário, os masculinos. A maravilhosa Guta é exceção, mas o subdesenvolvimento ficcional não poupa sequer as outras duas “Marias” do título.

Em todo caso, imagino aqueles três Joões do armazém, convertidos em “feministos”, dando seus pitacos sobre As três Marias: “A Maria José não vai ser punida por se apegar até o fim ao ópio do povo? Esse aborto precisa ser deliberado, clínico, nada de subterfúgios. A Guta, em vez de voltar para casa depois disso, tem que sair para o mundo, entendeu?”.

E Rachel, abraçada a seu manuscrito, fiel apenas a si mesma, já estaria lá longe.

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3 comments

  • Estou confusa: Desejo um esclarecimento: Desde minha inscrição no Clube, recebi 4 livros, o último hoje, 15/01. Não deveriam ser 5? Associei-me em setembro. Agradeço uma resposta.Obrigada, TAG!!!

  • Estou feliz em participar do Clube de Leitores da TAG.
    Associei-me em setembro. Quantos livros teria direito a receber? 4 ou 5? Por favor, me esclareçam. Estou confusa. Obrigada.

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