No dia que marca a independência do Brasil em relação ao domínio colonial português, é importante pensar no que desejamos celebrar e, por outro lado, olhar com a sensibilidade acesa para as profundas feridas de uma história acidentada e complexa. Só assim podemos apontar a direção para onde queremos nos movimentar.
Pode ser que a riqueza da literatura brasileira venha justamente daí: somos um povo em elaboração sempre insuficiente de traumas solitários e compartilhados. Um povo ferido de forma desigual, com um legado ainda escancarado de séculos de colonização e escravização de pessoas negras e indígenas. Para seguir resistindo à desumanização de populações marginalizadas, precisamos narrar coletivamente e escutar as narrativas que correm às margens da história oficial.
Preparamos uma lista com onze livros que podem ajudar a reescrever a história do Brasil. Seja por explorar histórias que não têm a devida visibilidade nas narrativas oficiais ou por ampliar nossa percepção sensível sobre problemas estruturais que se tornaram costumeiros demais, como a desigualdade, a fome, o racismo e o genocídio indígena. Tem sugestões do clássico ao contemporâneo, de vários tamanhos, estilos e gêneros. São livros que refletem a nossa história com força e coragem – e, por isso, podem também exigir força do leitor. Mas a gente aposta que, mesmo em páginas dolorosas, o encantamento do encontro com uma grande obra vai te alcançar.
Úrsula (1859), Maria Firmina dos Reis
Um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina e obra inaugural da literatura abolicionista no Brasil. A autora narra a história de um casal apaixonado que encontra obstáculos para ficar junto, costurando à trama romântica a experiência da escravização. A escritora e educadora maranhense faz um retrato a um só tempo real e imaginativo daquele momento histórico, demarcando a subjetividade, a memória e os desejos de pessoas escravizadas num período em que esse universo era raramente ou nunca visibilizado na literatura.
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Machado de Assis
Um retrato irônico e crítico da decadente elite brasileira do século 19, narrado por um defunto que revisita suas memórias. Através do protagonista Brás Cubas, um membro da aristocracia do Rio de Janeiro, Machado de Assis convoca o leitor a pensar sobre as contradições, inconsistências e crueldades da estrutura social do Brasil escravocrata. Estruturada de forma não linear, a narrativa fundou o realismo no país ao retratar com sutileza e humor a hipocrisia burguesa da banalidade cotidiana até a esfera política.
Vidas secas (1938), Graciliano Ramos
Através da trajetória de uma família de retirantes na aridez do sertão nordestino durante a seca, o escritor alagoano convida o leitor a uma aproximação crua e sensível da experiência de opressão sistemática dos camponeses pobres no Brasil agrário. Em uma narrativa de impressionante apuro estético, Graciliano Ramos explora com profundidade e humanidade uma série de questões que estão longe de terem ficado no passado: a exploração dos trabalhadores rurais, a concentração de terras no sistema latifundiário e os efeitos desiguais da seca sobre a vida da população mais vulnerável.
Quarto de despejo (1960), Carolina Maria de Jesus
Marco da literatura de autoria negra, feminina e periférica, a obra autobiográfica reúne quase cinco anos de registros dos diários da escritora mineira na década de 1950, quando ela vivia na favela do Canindé, em São Paulo. Em relatos brutais que contemplam sem eufemismos a experiência da fome, a precariedade da vida na favela e os limites do machismo e do racismo naquele espaço-tempo, a autora narra seu cotidiano como catadora de papel e mãe de três filhos em situação de extrema pobreza.
As meninas (1973), Lygia Fagundes Telles
Ambientado durante os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, o romance fundamental da dama da literatura brasileira joga luz sobre os efeitos da repressão, da censura e da violência sobre as vidas de três jovens universitárias. Lorena, Lia e Ana Clara vivem num pensionato para moças. Com a proximidade e as diferenças que marcam suas experiências, elas adentram a vida adulta tocadas ora pelo deslumbramento, ora pela dor, em meio ao turbulento contexto político da época.
Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves
A história de uma mulher africana sequestrada na infância e escravizada no Brasil conduz o leitor por um retrato detalhado da experiência da escravidão, baseado em extensiva pesquisa documental. A mineira Ana Maria Gonçalves entrelaça com destreza elementos da violência e precariedade das condições de vida dos escravizados a aspectos de resistência e preservação de tradições culturais e religiosas, mostrando a centralidade dessa memória ancestral na construção da identidade afro-brasileira. A obra também convoca o olhar do leitor para a experiência particular das mulheres no sistema escravocrata.
A queda do céu (2010), Davi Kopenawa
As palavras do xamã e porta-voz Yanomami, recitadas ao etnólogo francês Bruce Albert, oferecem uma perspectiva única e profunda sobre a cosmologia, a cultura, e as lutas dos povos originários, denunciando as ameaças contínuas à sua existência pela exploração econômica e a destruição da floresta. Uma poderosa ferramenta de lapidação crítica para deslocar os ideais de desenvolvimento da contemporaneidade branca e capitalista e pensar outros modos de relação com a natureza de que somos parte.
Saberes da floresta (2020), Marcia Kambeba
Esta coletânea de poemas e relatos de experiência traz uma rica perspectiva dos modos de vida e aprendizagem de povos originários na contemporaneidade, com seus símbolos, músicas, grafismos, intersecções com a tecnologia, aproximações e diferenças entre etnias. A educadora e pesquisadora, indígena Omágua/Kambeba propõe um mergulho belo e afirmativo nas tradições culturais indígenas, cruzando saberes e ampliando possibilidades de ensino e aprendizado.
Banzeiro Okotò, Eliane Brum (2022)
Entre relato pessoal e investigação jornalística, a premiada repórter oferece uma visão profunda e crítica sobre a floresta amazônica, lugar que habita e defende ativamente, de corpo e palavra. Livro incontornável para entender a importância da Amazônia e de seus guardiões, os povos tradicionais, para o Brasil e o mundo, e os efeitos devastadores do desmatamento e da execução de projetos desenvolvimentistas na região. Um manifesto urgente pela existência de todas e todos que constituem este planeta – humanos, animais, plantas, rios e montanhas.
Outono de carne estranha, Airton Souza (2023)
Uma história de amor entre homens ambientada no maior garimpo a céu aberto do mundo, Serra Pelada, na década de 1980. No livro que venceu o Prêmio Sesc 2023, o escritor paraense faz uma incursão literária na história de seu estado, costurando fatos e ficção e explorando dilemas que, ainda hoje, pertencem à coletividade brasileira: o garimpo e seus efeitos sobre o território natural e existencial que o cerca, a homossexualidade em um tempo e espaço inóspitos e as muitas relações de poder que violentam os grupos marginalizados.
A voz que ninguém escutou, Renan Silva (2024)
Maria, uma mãe corajosa, abandona sua cidade no Nordeste para tentar a sorte no Rio de Janeiro, acompanhada por dois filhos que se tornam vítimas das circunstâncias adversas de um país em transformação. O contraste entre as trajetórias dos filhos de Maria acentua as injustiças e as lutas de uma nação dividida. Um livro imprescindível para quem busca compreender a alma do Brasil e a persistência daqueles que nunca desistiram de sonhar.
Bah, muita coisa que eu nem li nem conhecia. Anotei tudo.
Ficamos muito felizes, Arthur! Boas leituras!