Escrever sobre criação literária, para qualquer escritor, é algo meio irresistível. Nenhuma outra profissão parece estar tão interessada em olhar para si mesmo quanto essa. Será por causa dos mitos que a cercam, e então lá vai o ficcionista, com suas reflexões sobre os mecanismos da escrita, querendo desesperadamente combater esses mitos? Ou será por que, para o próprio escritor, sua atividade conserva uma aura de mistério mesmo após décadas de carreira? De toda a forma, essa me parece a única profissão sobre a qual você pode falar com sua própria ferramenta de trabalho, o que faz toda a diferença. Nenhum médico vai conseguir discorrer sobre a medicina com um bisturi.
Há obras desse tipo que são mais “técnicas” ou “teóricas”, seja lá como você quer chamar, as quais, olhando para o que há de mais relevante na literatura universal, tentam extrair os princípios da boa literatura, os truques por trás da montagem do universo ficcional, etc. A louca da casa não é exatamente isso. O livro de Rosa Montero é um híbrido, algo muito pessoal e, por isso pode fazer sentido também para aqueles que não escrevem ficção e nem estão interessados em escrever. É um livro sobre escrita e vida de escritores, mas também sobre amor, loucura, morte, identidade.
Eu me vejo contando em uma tarde futura umas historinhas saídas dele. Por exemplo, aquela do Mark Twain e seu irmão gêmeo na banheira. Eles eram tão parecidos que usavam pulseirinhas. Na banheira, um deles se afogou. As pulseiras tinham se desamarrado. “Nunca se soube qual dos dois morrera, Bill ou eu,” disse Twain a um jornalista muitos e muitos anos depois. Conto isso para alguém e a pessoa se impressiona e eu me impressiono de novo. Estamos na frente do mar. Tudo em volta parece nos lembrar de nossa insignificância, mas, ao mesmo tempo, o oceano, as rochas e as pulseirinhas destroçadas dos gêmeos também falam de algum tipo de acaso maravilhoso, e é nessa ideia que devemos nos agarrar. Talvez eu decida falar sobre a última passagem de A louca da casa também, a das freiras enclausuradas. Vamos ficar reflexivas de repente. O oceano vai continuar lá, violento. Eu vou estar pensando em qual é minha varanda-simbólica agora. O que estou vendo dessa varanda. Não tenho certeza.
Rosa Montero também tem sua dose de incertezas, o que deixa seu livro positivamente imperfeito e sincero. Gosto em especial da sua busca desenfreada pelos próprios anões, os quais ela insere nas tramas às vezes sem se dar conta. Por que faz isso? A reflexão é interessante pois expõe uma certa vulnerabilidade que acompanha todo escritor; publicar uma obra permite que desconhecidos entendam coisas sobre nós antes ou muito melhor que nós mesmos. Como Rosa, já notei elementos que se repetem em meus romances: lugares abandonados, carros, botas. Também já tentei fazer o exercício de voltar e voltar e voltar no tempo para descobrir talvez a cena primordial – da vida de verdade – em que houve alguma espécie de ponto de virada mediado por esses objetos ou lugares. Mas é difícil. Talvez os próximos livros descubram por nós. O importante é, ao detectarmos a repetição, não escondermos os anões, os lugares abandonados, os carros, as botas. Trair o inconsciente seria criminoso.
Os momentos mais fracos de A louca da casa ocorrem quando a autora parece querer provar a inexatidão da memória e o triunfo da imaginação. Assim, a tal cena do encontro desastrado com M. é repetido três vezes, em três versões, até que a própria existência de M. e dessa paixão inexplicável seja questionada pelo leitor. Não vejo sentido no truque, que acaba me parecendo um passo para trás diante da ideia de jogar com alguns dados autobiográficos. Que há mistura entre vida e ficção, sempre, mesmo sem querer, não tenho dúvida. Mas não sei se quero entrar tantas vezes na Torre de Madri com Rosa e M. quando sei que a torre, de cima a baixo, é falsa.