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Eles ou nós

Os Tamoios Os Tamoios Share this post

Quando você abre um livro de Nelson Rodrigues, já sabe que vai levar uns monstros para passear. A ligação entre leitor e personagem dificilmente vai ser do tipo “me identifiquei com ela” ou “eu teria feito a mesma coisa no seu lugar”; é mais como se olhássemos tudo de uma certa distância, carregados por uma curiosidade mórbida e insaciável. Enquanto as personagens mergulham cada vez mais fundo em suas obsessões, a gente vai marcando mentalmente pequenos “x” na lista de assuntos tabus. Ao longo de sua carreira, e de diversas formas, Nelson Rodrigues declarou que a arte deveria expôr o horror para que nós, na vida real, pudéssemos nos “salvar”. Nas palavras do dramaturgo: “A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de todos nós”.

Estou pensando muito naquele quadro dos tamoios, para o qual o protagonista de O casamento olha incansavelmente nos momentos mais tensos do romance. Haveria algo de idealizado na figura daqueles índios, representantes talvez de um estado puro, sem “vícios”? Ou, ao contrário, o grande mérito de um mundo, digamos, mais civilizado, seria o de jogar para baixo do tapete nossos desejos mais primitivos? A dúvida em relação à simbologia do quadro dos tamoios me deixa um pouco tensa. Ao mesmo tempo, gosto da sensação de ficar com perguntas sem resposta. Isso é o que faz a boa literatura.

Muita coisa interessante de O casamento sai da boca do padre, Monsenhor Bernardo. Ok, a gente sabe que nenhum personagem de Nelson Rodrigues é bom (no sentido de virtuoso, moralmente íntegro, etc), mas o padre parece fazer o papel de quem sabe – e aceita – toda essa monstruosidade própria dos humanos. Ele é a pessoa mais consciente da história, o filósofo, se assim a gente quiser chamá-lo. Vou me deter em três declarações dessa figura meio cômica e inesperada. Gosto de listas.

1. “O ato sexual é uma mijada”, diz Monsenhor Bernardo lá pelas tantas. Sabino e o padre estão conversando no banheiro, e a comparação pode soar estranha ao leitor, quase abominável. Ela vem após uma defesa, por parte do padre, do casamento como instituição, colocando o noivo e a noiva em segundo plano e diminuindo a importância do ato sexual. Na verdade, o romance vai fazer isso o tempo inteiro: mostrar como as instituições, embora em dessincronia com o desejo dos indivíduos, acabam sempre triunfando. Quando falamos na obra de Nelson Rodrigues, é comum pensarmos que tanto acúmulo de obscenidades tem a intenção de fazer uma crítica às convenções sociais de mil novencentos e bolinha. Mas talvez possamos lê-lo como um moralista que está declarando, no subtexto, que essas convenções sociais precisam existir para que a gente possa se salvar de nós mesmos.

2. Em outro diálogo entre Sabino e o Monsenhor, o primeiro pergunta, desesperado: “Devo dizer tudo? Deve-se dizer tudo?”. Essa é uma questão que vai e volta em O casamento, inclusive no clímax na praia deserta, com o incesto já pairando no ar: devemos dizer tudo? Na conversa entre os dois homens, o padre é categórico: “O que não se diz apodrece em nós.” Mas, ao longo do romance, nem Sabino nem ninguém encontra algum tipo de tranquilidade na confissão. Ao dizer tudo, na praia, Sabino não acaba perdendo Glorinha?

3. “Sabino, só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva”. A culpa seria então civilizatória, no sentido de que impede que nossos instintos mais primitivos e abomináveis venham à tona; ou, se não impede, ao menos faz com que a gente pague por eles em algum momento. Sabino não paga pelos seus verdadeiros pecados – o desejo por Glorinha, o estupro de Silene – porque o casamento precisa sair, as filhas precisam receber seus cheques e os segredos, enfim, precisam voltar para debaixo do tapete. Então ele se candidata a pagar pelo pecado de outro.

E os tamoios? Por que os tamoios? Por que tanta calma ao olhar para os tamoios?

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