O leitor que tem a coragem de abrir A câmara sangrenta segue em frente sozinho, como quem entra numa floresta em noite cortada por uivos de lobos famintos. Talvez, em caso de apertos mais sérios, tente se consolar com a ideia de que tudo não passa de imaginação, ficção, brincadeira, feito um trem fantasma no parque de diversões: “Hahaha, ufa, que susto”.
Quem pensar assim estará se iludindo. Embora casos de óbito não tenham sido relatados até o momento, ninguém atravessa A câmara sangrenta impunemente. O livraço de Angela Carter é coisa séria.
Que é ficção, é. Mas que achado simples e sensacional é o da escritora inglesa: lidar diretamente com a substância mais primitiva de onde brotou a ficção humana, aquele pântano interior de terror e violência e sexo e morte que alimentava lendas contadas em torno da fogueira desde tempos imemoriais até os medievais.
O mesmo charco que mais tarde, na modernidade, seria drenado, aterrado, ajardinado e, com o nome de contos de fadas ou da carochinha, loteado em histórias infantis mais ou menos inocentes.
Ninguém é inocente no mundo de Angela Carter. O sexo, a fome e a selvageria que haviam sido atenuados até quase sumirem da receita, no processo de domesticação de nossos calafrios ancestrais, voltam para reivindicar seu protagonismo. O desejo feminino, o mais reprimido, é por isso mesmo o mais triunfante. Todos sabemos que nada disso jamais foi embora de verdade, afinal.
A famosa “moral da história” recua até o fundo do palco, onde a meia-luz deixa tudo mais difícil de discernir. O que será que esse conto está querendo me dizer? Desafio qualquer um a encontrar resposta satisfatória à pergunta ao terminar de ler o brevíssimo A filha da neve.
O achado da premissa pode ser simples, mas não era fácil o trabalho de Angela Carter. Se ela se sai brilhantemente do desafio, isso se deve, a meu ver, a duas qualidades principais. A mais óbvia é a excelência de sua escrita, que evoca com requintes de musicalidade e ritmo um banquete quase excessivamente rico de cores, sabores, sons e outros efeitos sensuais, à moda de Oscar Wilde. Um traço que a tradução de Adriana Lisboa transpõe com talento para o português.
O segundo motivo do sucesso é mais difícil de definir. Para entendê-lo, é preciso levar em conta como seria fácil, ao lidar com esse material tão antigo quanto repisado, cair no registro raso do pastiche ou da paródia. “Mais uma versão para a história do Chapeuzinho Vermelho? Hmm, sei.” Mais do que fácil, era quase inevitável descambar para o risível, o kitsch, o inócuo, e no entanto… A autora acredita demais em seu material e, por causa disso, acreditamos demais em seus pesadelos.
Ao fundo, uivam dezenas de lobos de olhos vermelhos e costelas à mostra. A certa altura intuímos que os lobos vivem dentro de nós, que ninguém está brincando, que estamos em perigo de verdade. Mas já não podemos parar de ler.