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Pequena história, grande História

colunas dezembro-03 Share this post

Tento fixar com alfinete num quadro, como fazem os colecionadores com as borboletas, o estranho e irresistível encanto da voz que conduz a narração de A praça do diamante, de Mercé Rodoreda. É um vício antigo, motivo de orgulho e constrangimento em doses iguais: não basta admirar o voo do bichinho, é preciso entender sua mecânica.

O paradoxo, como se sabe, é que borboletas no mostruário não borboleteiam mais.

E eu aqui falando de borboletas quando os pombos seriam, no caso, metáforas bem mais adequadas.

A ingenuidade da narradora da obra-prima de Rodoreda é peça fundamental do jogo. Permite que o relato de uma vida miúda, seu dia a dia de dores e prazeres – mais aquelas do que estes à medida que o tempo passa –, fique o tempo todo em primeiro plano enquanto se desenrola ao fundo a História com H maiúsculo: a Guerra Civil Espanhola.

Sim, claro que a História interfere com a história. Na verdade, mais do que interferir, a penetra e estraçalha violentamente. E é nesse momento que a ingenuidade da narradora mostra seu valor. A praça do diamante jamais flerta com o painel histórico ou a abstração sociopolítica. É uma singela metonímia da guerra. Finge saber menos do que o leitor para melhor agarrá-lo pela garganta.

Se a ingenuidade é um ingrediente básico, o que me parece mais notável é o modo como essa voz plasma sua visão de mundo numa prosa de raríssimo poder de evocação, intensamente sensorial e capaz de descrições que, de tão nítidas, tiram o fôlego. Interessam-na o tamanho das coisas, as texturas, os pesos, formas, cores, luz e sombra, o modo como funcionam e deixam de funcionar. Perde momentaneamente o fio da história para se deter num detalhe que se poderia chamar de bobo. E que de bobo não tem nada.

E volta e meia introduz na receita um elemento bem pedestre e sabotador do lirismo, impedindo a narrativa de descambar para o pomposo e tornando tudo mais forte. Literatura pura. Segue como exemplo um trechinho escolhido ao acaso, na excelente tradução de Luis Reyes Gil.

“Para entrar no jardim, tive de descer quatro degraus feitos de tijolo, já um pouco gastos nos cantos, cobertos por um espesso caramanchão de jasmim, daquele de estrelinha pequena, daquele que, assim que o sol se põe, nos sufoca de tanto aroma. (…) Antes de entrar no porão passava-se por um pátio de cimento com uma cisterna no meio para recolher a água da chuva. O cimento tinha muitas rachaduras e nas rachaduras formavam-se montinhos de terra misturada com areia, e de lá saíam formigas como soldados. E quem fazia os montinhos de areia eram elas.”

Formigas e soldados. A mágica de Rodoreda é fazer, como quem não quer nada, sua história pequenina engolir a História gigante. A mágica acontece quando nos damos conta de que em seu romance cabe o mundo.

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