O que faz Emmanuel Carrère, um dos principais escritores franceses deste século, é arriscado. Limonov é um personagem duro de roer. Político, poeta, aventureiro, editor, artista de vanguarda, celebridade pop, bufão, picareta, nascido sob o regime de Stálin e ainda ativo na era Putin (que combatia e hoje apoia), o cara tem uma vida repleta de peripécias romanescas, sem dúvida. Mas…
Duas razões principais o tornam um desafio para o escritor. A primeira é o fato de ser tão múltiplo, contraditório e inverossímil que não cabe nos parâmetros consagrados da arte narrativa. A “jornada do herói” reescrita por Limonov ganha tantas piruetas e parafusos que se torna um enigma burlesco. Como disse Mark Twain, a ficção, ao contrário da vida, tem a obrigação de fazer sentido.
A segunda razão é a disposição infalível demonstrada pelo sujeito para, a cada vinte ou trinta páginas, cometer algum ato de chocante indignidade ou burrice para sufocar o embrião de identificação e envolvimento emocional que o leitor – como o próprio autor, que a certa altura chega a desistir do livro – possa ter começado a acalentar.
Se é desejável que personagens de romances sejam contraditórios, tridimensionais, falíveis e coisa e tal, Limonov abusa. Ele não é tridimensional: é absurdo. Não faz sentido. Falta-lhe aquela coesão mínima para se constituir como personagem.
Ou assim seria se não fosse um detalhe crucial: Limonov não é um personagem de ficção. Carrère toma certas liberdades com sua “biografia romanceada”, e deixa isso claro ao se incluir no quadro e refletir o tempo todo sobre o processo de escrita. Contudo, o homem é basicamente “real”.
E daí? O que isso muda? Bem, muda tudo. O autor chamou o livro de “romance de não ficção”, categoria criada por Truman Capote para classificar seu clássico A sangue frio, relato romanceado de um crime verdadeiro. O rótulo cai bem, mas me deixou pensando no que Limonov traz de novo, talvez de desbravador, para a zona de fronteira de um gênero que se alimenta de sua crise permanente.
Meio século atrás, Capote renovou o romance ao esculpir com as ferramentas da ficção uma pedra bruta de informação jornalística. Acontece que A sangue frio continuaria tendo o mesmíssimo valor literário (embora viesse a perder em apelo mercadológico) se aqueles assassinatos existissem apenas na imaginação de seu autor.
Limonov é diferente. Caso o maluco do título fosse um personagem de ficção, o livro que conta sua vida seria uma algaravia idiota destinada à poeira da história. Só a referência à realidade o salva. Suspeito que um novo tipo de pacto entre “verdade” e “mentira” se estabeleça aí.