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Entre dois mundos

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Quem não conhece a frase mais famosa de O leopardo, aquela que virou moedinha corrente de cultura geral? “Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”, diz Tancredi, o sobrinho favorito, a Dom Fabrizio Salina, príncipe siciliano.

Dom Fabrizio estranha a princípio a aparente traição do parente, mas acaba tirando da lição alívio para a angústia que sente com a sina de sua classe diante da ascensão da burguesia, representada pelo desembarque das tropas revolucionárias do republicano Giuseppe Garibaldi na ilha, em 1860.

Como costuma ocorrer, a tirada cheia de Realpolitik do esperto Tancredi virou, fora de contexto, uma armadilha de leitura. Longe de resumir o que seria uma espécie de manual maquiavélico para a perpetuação das relações de classe através da história (como não faltou quem visse o livro na época do lançamento), a tal máxima faz quase o oposto.

Aparecendo já na página 31, é ridículo supor que um artista tão sutil como Giuseppe Tomasi di Lampedusa destinasse à frase de Tancredi o papel de essência prematura do romance. Emblema do instinto de sobrevivência de uma classe condenada, ela é só o ponto de partida de uma viagem melancólica, iluminadora, nuançada e trágica pela forma como as relações sociais e a sensibilidade individual são afetadas por uma história que, justamente, nunca para de mudar.

As qualidades de O leopardo são tantas, e tão bem amarradas nos diversos planos de construção da obra, que o risco desta afirmativa é grande, mas a riqueza do personagem de Dom Fabrizio me parece o maior de todos os feitos de Lampedusa.

Também ele um nobre siciliano decadente, o escritor sabia do que estava falando: o “Principão”, como o personagem é chamado, foi inspirado em seu bisavô. Se a visão “de dentro” contribuiu para a verossimilhança quase aflitiva de um livro repleto de descrições em prosa luxuriosa, é evidente que ela não bastaria. Nobres decadentes houve muitos. Lampedusa, só um.

Conhecimento de causa ajuda, mas é com arte que se cria uma figura tão contraditória, viva e fascinante como a do príncipe astrônomo que prefere a companhia das cachorros à dos homens e que contempla “a ruína da própria casta e do patrimônio sem esboçar nenhuma iniciativa e com vontade ainda menor de tentar repará-la”.

Corpulento e sensível, arrogante e vulnerável, Dom Fabrizio é um homem de transição entre dois mundos. Seu olhar crepuscular enche de desencanto, mas também de sabedoria e humor, um livro que é um manancial de frases lapidares como aquela de Tancredi. “O amor. Claro, o amor. Fogo e labaredas por um ano, cinzas por trinta”, pensa o protagonista quando decide contrariar o coração da filha e incentivar o casamento do sobrinho com Angelica, a bela burguesa rica.

É curioso observar que o próprio romance se situa numa zona de fronteira temporal: construído com as melhores ferramentas estéticas do século 19, e portanto passadista, deixa aqui e ali a modernidade entrar em jatos furiosos, como quando Dom Fabrizio se lembra de uns versos lidos em Paris, de “um daqueles poetas que a França desenfornava e esquecia a cada semana”. Era Baudelaire.05

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