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O danado do Gógol

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Compreender o papel que O capote, do russo Nikolai Gógol, desempenha na dinâmica narrativa de O xará é o grande desafio que fica ressoando após a leitura do romance de Jhumpa Lahiri. No mais, a prosa realista da escritora deixa tudo às claras, bem transparente – mesmo que às custas de alguma superficialidade. Mas o danado do Gógol…

A questão do nome, escancarada já no título, é um elo óbvio. Mesmo que o patético Akaki Akakiévitch de O capote não tivesse sido nomeado com dificuldade pela mãe, como foi também o pequeno Gógol, restaria o fato de que este é um nome absurdo para um americano de origem bengali.

Na verdade, trata-se de uma travessura que o jovem casal indiano se permite ao ter seu primeiro filho, fugindo da tradição e ao mesmo tempo tentando enviesadamente preservá-la diante das regras impostas pela cultura americana que acaba de adotar.

O nome deveria ser usado apenas em casa, uma espécie de apelido familiar diferente do “nome bom”, oficial – traço da cultura bengali que guarda uma vaga correspondência com o jeito russo de nomear pessoas. Não dá certo. O menino vira Gógol mesmo.

Expressando uma paixão literária do pai, sacramentada num bonito episódio de quase morte, o problema é que o nome esquisito não expressa o filho. Pelo contrário: o menino o odeia. Faz questão de nunca ler o grande autor russo, nem na escola nem em casa, apesar de ganhar um luxuoso volume em capa dura do pai.

É evidente a implicação metafórica dessa crise de identidade – ou de identificação. Mesmo depois que muda legalmente seu nome para Nikhil, Gógol permanece desconfortável na própria pele. É americano, mas não é visto assim pelos americanos brancos. Tem origem indiana, mas as viagens que faz a Calcutá com os pais são uma tortura. Não está nem aqui nem lá – pudera, seu primeiro nome é um sobrenome russo! Adulto, sua vida amorosa vai refletir esse desajuste.

A novidade é pequena até aí. Essa costuma ser a sina dos filhos de imigrantes, e a literatura “pós-colonial” que faz sucesso nas últimas décadas – em especial no mercado de língua inglesa – está cheia de variações sobre o tema. A contribuição de Jhumpa Lahiri é embrulhar uma história singela de inspiração autobiográfica, sem grandes arroubos dramáticos, em uma prosa fluida, sensível e tão carregada de detalhes sensoriais quanto um prato indiano é carregado de condimentos.
Falta densidade à maior parte dos personagens, que tendem ao bidimensional (nenhum deles mais do que Sonia, a irmã de Gógol), mas o leitor que torce pela felicidade do rapaz pode nem se dar conta disso, embalado por um realismo esteticamente conservador, mas competente, que não hesita sequer em abraçar o velho narrador onisciente em terceira pessoa.

E há, claro, um tal de O capote. Sem a forte sugestão de intertextualidade que atravessa o romance, O xará talvez pudesse ser posto de lado como uma narrativa pós-colonial rotineira. A janela que areja e despenteia seu realismo bonitinho é escancarada no final, quando Gógol enfim começa a ler seu xará, praticamente obrigando o leitor a fazer o mesmo e emendar uma história na outra. (Ainda bem que a TAG pensou nisso e providenciou uma edição do conto, não?)

Não é uma emenda fácil. O que um escritor russo desvairadamente cômico, autor de uma cruel história de fantasma encharcada de crítica social, tem a ver com Jhumpa Lahiri e sua ânsia cândida – e desprovida de humor – de retratar sua própria realidade? À moda de Shakespeare, poderíamos perguntar: o que é um nome? Ou ainda: o que é nomear as coisas, o que é escrever?

Façam suas apostas.

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