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A influência de Ragtime

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Se Ragtime fosse uma pintura, seria um mural complexo pintado por Diego Rivera, um panorama cheio de detalhes que tenta dar conta de um período da História. Já se falou que se trata de um romance “sem protagonistas”, embora a história de Coalhouse Walker Jr. acabe se sobressaindo da metade para o fim do livro. Talvez seja isso mesmo, um romance em que não conhecemos nenhum personagem melhor do que outro, ou de forma mais profunda do que outro.

É uma escolha, um projeto literário. Os grandes personagens de Ragtime são o lugar e o tempo. O encontro de lugar e tempo. Pelas páginas do romance, circulam figuras reais e inventadas, que se entrecruzam e esbarram em importantes acontecimentos do início do século 20: o nascimento da linha de montagem industrial, os sindicatos e o movimento anarquista, os primeiros passos da aviação, a tensão latente e real entre imigrantes de diferentes origens num país ainda em formação. Sobre a mistura de invenção e realidade, à época do lançamento, E. L. Doctorow comentou: “Comecei a enxergar Ragtime como uma não-ficção ficcionalizada. É o contrário de Truman Capote. Eu vejo todos esses novos jornalistas como caras que estão do outro lado”.

Sim, o movimento sincopado de Doctorow era o contrário do que faziam jornalistas como Capote e Gay Talese. Enquanto esses caras pegavam a realidade e a romanceavam, Doctorow colocava fatos reais em uma cumbuca e adicionava ficção e possibilidades. E batia até uma coisa ficar indissociável da outra. O encontro entre Houdini e o Arquiduque Francisco Ferdinando, por exemplo: poderia ter acontecido, mas o fato é que os dois jamais se viram na vida real (essa lista do Guardian coloca-o como um dos “10 melhores encontros imaginários” propostos pela literatura).

Li Ragtime pela primeira vez há pelo menos dez anos. Lembro de ter ficado muito impressionada. O romance de 2009 de E. L. Doctorow, Homer & Langley, também figurou na minha lista de favoritos por anos. Ele nos apresenta a vida ficcionalizada de dois personagens históricos, os irmãos Collyer. Os irmãos Collyer são acumuladores. Se você já assistiu Discovery Channel, sabe do que eu estou falando.

Depois de Ragtime, um outro romance americano – uma trilogia, na verdade – também me fascinou pela vitalidade, o experimentalismo, a ousadia usada para criar um retrato caleidoscópico do período que começa antes da Primeira Guerra e termina alguns anos após o conflito. Trata-se da Trilogia U.S.A., de John dos Passos. Essas duas experiências de leitura, Ragtime e a trilogia de Dos Passos, reverberaram a ponto de, muitos anos depois, se cristalizarem como fortes referências no momento em que comecei a trabalhar na concepção do meu terceiro romance. Seria um romance diferente dos anteriores, com um mundo ficcional muito mais amplo, mas, mais do que isso, seria um romance que exigiria que eu me debruçasse sobre muitos livros de História antes de poder esboçar a primeira linha. A história se passaria nos dias de hoje, no norte da Califórnia, em uma região onde a principal atividade econômica é o cultivo ilegal de maconha.

Desde o início, minha intenção era criar perfis ficcionalizados de pessoas reais, e então intercalá-los com a narrativa principal. A história da proibição da maconha e da guerra às drogas está cheia de figuras fascinantes, contraditórias, narcisistas, com um milhão de episódios absolutamente dramáticos (ou, às vezes, hilários). Eu queria usar essas figuras que giraram ao longo de toda a vida ao redor de uma plantinha para mostrar a complexidade da questão e o nível de influência que ela atinge. Quando você faz esse movimento de retratar personagens históricos e fatos históricos, parece que seus outros personagens – os fictícios – adquirem um peso diferente. É como se o pacto de realidade criado nos “capítulos históricos” vazasse para a narrativa principal. Tanto é que um de meus primeiros leitores (o livro será publicado em novembro) contou-me que jogou o nome completo de um dos personagens no Google, crente de que se tratava de uma pessoa real.

Também fui ao Google depois de Ragtime saciar aquele tipo de curiosidade voraz e meio envergonhada que quer saber se “aquilo aconteceu de verdade”. Estava interessada especialmente na primeira visita de Freud aos Estados Unidos. Tudo bem, a voltinha no Túnel do Amor com Jung devia ser um alívio cômico saído da cachola do autor, mas e o resto? Verdade que o pai da psicanálise odiou o país? Acabei encontrando uma matéria na revista literária VQR. “Freud descobre a América”. O texto foi publicado em 1970. É um relato bastante detalhado e que deve entediar a maioria, mas pesquei nele algumas informações: Freud realmente passeou por Coney Island (o antigo reduto dos parques de diversões); Freud visitou o museu Metropolitan e se interessou sobretudo pelas esculturas gregas; Freud assistiu ao seu primeiro filme. “Em 13 de setembro”, escreve o autor, “Freud, Jung e Ferenczi atingiram outro objetivo da viagem, uma visita às Cataratas de Niágara, mas os sentimentos de Freud ficaram feridos quando um guia da Caverna dos Ventos referiu-se a ele como ‘o velho’. Mais tarde, os três companheiros foram a Putnam’s Camp, nos Adirondacks, uma visita animada pela visão de um porco-espinho (outro objetivo da viagem aos Estados Unidos) e por Jung cantando canções alemãs, mas estragada depois por Freud devido a um leve ataque de apendicite”.

Tendo a matéria sido publicada em 1970, é bastante provável que ela tenha sido lida por E. L. Doctorow no momento em que ele trabalhava em Ragtime. Talvez tenha sido a fonte primária para o episódio envolvendo Freud. Ao cogitar essa possibilidade, tive um arrepio. Um arrepio histórico, meio hippie, que se impressiona com a conexão entre as coisas.

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