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Indicações de livros

Os outros, visíveis e invisíveis

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Quando estou lendo um livro, às vezes me parece irresistível conduzir uma investigação às cegas a respeito de “influências literárias”. Uma frase construída de certa maneira ou uma trama arquitetada de um jeito específico pode fazer com que eu me pergunte: será que esse autor leu aquele autor? Raramente eu procuro a verdade nas entrevistas ou algo parecido (Ahá, eu tinha razão, Fulano estava lendo Beltrano quando escreveu aquele livro!), deixando a coisa toda bem vaga, um exercício meio bobo de especulação.

Declarações dos próprios autores, aliás, podem me quebrar as pernas: eu não imaginaria, por exemplo, que Karl Ove Knausgård teria tirado alguma coisa da obra de Gabriel García Márquez, mas isso é algo que está posto no quarto volume da série “Minha Luta”, junto com referências a bandas dos anos oitenta que não, é melhor você não tentar ouvir (quem fez isso se arrependeu mortalmente).

Outro dia fiquei me perguntando se Elena Ferrante teria lido O Terceiro Reich de Roberto Bolaño. Seu A filha perdida, tal como o livro do chileno, se passa em uma cidade costeira, e ambos não são exatamente livros de suspense, mas exploram uma tensão velada, uma atração/repulsa que certas pessoas causam no protagonista, o qual, por sua vez, tem algo de voyeur solitário. Os dois romances são contados em ordem cronológica, um diário de férias, “No dia seguinte, a família tal estava lá”, etc. Coloquei esses livros lado a lado e talvez isso faça sentido apenas para mim mesma. Mas ler é isso aí, algo que a gente faz sozinho, por mais que possamos compartilhar depois impressões de leitura com outras pessoas.

No volume Uns e outros, que a TAG organizou por conta de seu aniversário de três anos, não é preciso especular; os pares estão organizados, a) a inspiração e b) o resultado. Dez escritores destacados da literatura em língua portuguesa escolheram contos célebres e produziram um novo conto a partir deles. Os temas e estilos são tão variados quanto o tipo de intertextualidade que estabelecem. Há histórias para todos os gostos, dos originais aos contemporâneos. Para quem gosta de pensar em estrutura do conto e essas coisas da arquitetura literária, aí estão medalhões das histórias breves: Hemingway, Maupassant, Machado de Assis, Katherine Mansfield. E sempre é bom ler Pai contra mãe fora do contexto vão-me-cobrar-isso-no-vestibular.

Se tivesse que escolher um dos contos escritos para o volume, eu diria que meu preferido é o do Cristovão Tezza. De Tolstói, Tezza tira o casal atraído e o posterior arrefecimento da paixão por conta de uma cena que envolve o pai do objeto amado: no primeiro conto, o militar está flagelando um tártaro; no segundo, o ex-capitão do DOI-CODI emite opiniões não solicitadas a Beatriz (“para que o país brilhasse, eu trabalhava nas sombras, dia e noite”), na sala de uma casa curitibana sinistra onde chama a atenção um retrato do general Médici com a faixa presidencial.

As duas histórias são, na verdade, relatadas a uma audiência, e Tolstói já nos joga de cara o que pode ser a “história oculta” do conto: “Então os senhores dizem que o homem não pode entender por si próprio o que é bom e o que é ruim, que toda a questão está no meio, que somos vítimas do meio. Mas eu acho que toda a questão está no acaso”. Em Tezza, o périplo do carrinho usado é contado por Beatriz a uma amiga, com muito apuro técnico, piscadelas constantes e toques de humor. Deixando de lado as conclusões refinadas envolvendo subtexto e polifonia, eu diria que, nos dois contos, a sensação final é de: puta merda, esses velhos conseguiram estragar uma relação tão promissora!

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