Quem escolheu a leitura do mês dos associados da TAG Curadoria foi ninguém mais, ninguém menos que a estrela literária do momento, Édouard Louis. Um dos nomes mais importantes da literatura francesa contemporânea, o escritor de 32 anos reuniu multidões em sua passagem pelo Brasil em outubro de 2024, aplaudido de pé pelo público que lotava o auditório da Flip 2024 e aclamado em sua entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura.
Em narrativas honestas e precisas, Édouard Louis disseca suas traumáticas experiências familiares em uma vila operária no norte da França. Seu livro de estreia, O fim de Eddy (Tusquets, 2018), foi publicado quando o autor tinha apenas 21 anos, e tornou-se um grande sucesso de crítica e público, conquistando o Prêmio Goncourt para Primeiro Romance. A obra se debruça sobre sua infância marcada por homofobia, pobreza e violências, e seu esforço inútil em se adaptar para sobreviver.
De 2023 para cá, a Todavia publicou outros quatro títulos do autor: Lutas e metamorfoses de uma mulher, Quem matou meu pai, Mudar: método e Monique se liberta. Seus livros traçam um retrato profundo e impactante da violência que perpassa as estruturas sociais e invade as relações mais íntimas, perpetuando opressões de classe, gênero e sexualidade.
O LIVRO ESCOLHIDO POR ÉDOUARD LOUIS
Na caixinha de abril da TAG Curadoria, Édouard Louis indicou aos associados um clássico best-seller da literatura francesa. O livro influenciou profundamente sua escrita ao borrar a fronteira entre o íntimo e o político. Leia abaixo a entrevista exclusiva com o autor!
“Todo o tom, a forma, o estilo e a construção do livro são impregnados pelo íntimo. E a intimidade também é uma força de confronto. Através dela, o autor convida o leitor para seu espaço pessoal, fala olhando diretamente nos olhos, e não há como escapar. Esse uso da intimidade como forma literária me ajudou muito a escrever ‘Mudar: método’ e ‘Monique se liberta’.”
– Édouard Louis sobre o livro indicado aos associados da TAG.
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QUATRO PERGUNTAS PARA ÉDOUARD LOUIS
1- Escrever talvez seja sempre um processo de imersão ao mesmo tempo estética e emocional – especialmente quando a história que se conta é a própria história. Como foi para você revisitar territórios afetivos tão delicados da sua infância e da sua trajetória familiar? O que te motivou a mergulhar nesse complexo universo subjetivo?
Eu queria deslocar a fronteira entre o íntimo e o político. Queria falar sobre tudo o que era considerado impossível de narrar, pois era visto como muito “privado” pela literatura e pela sociedade: a sexualidade dos meus pais, a violência deles contra mim, a vida familiar.
Para mim, a definição de autobiografia é o risco. Falar sobre o que não pode ser dito. Se alguém hoje escreve uma autobiografia como Rousseau escreveu Confissões, então não é uma autobiografia, pois Rousseau quebrou barreiras que, graças a ele, já não existem. Se você escreve “Nasci em Paris em 25 de abril de 2004” e descreve suas visitas à casa da avó nos fins de semana, os cheiros quentes saindo da cozinha e sua estranha atração por um professor, isso não é autobiografia. Falar da própria vida não basta. Isso é apenas repetir o que a sociedade determina como “narrável”. Você não está dizendo “eu”, mas apenas ecoando a voz coletiva.
Penso, por exemplo, nos muitos livros de memórias de cantores ou políticos que apenas reproduzem o que se espera que eles digam, com uma ou duas “transgressões permitidas”, já esperadas. Por isso, frequentemente temos a sensação, ao ler textos pretensamente autobiográficos, de que estamos lendo a mesma coisa de novo e de novo. Porque os eventos narrados são aqueles que a cultura estruturou socialmente como narráveis.
2- No seu livro Lutas e metamorfoses de uma mulher, você fala em “escrever contra a literatura”. Em que sentido você entende que a sua escrita destoa e desafia as convenções literárias?
Quando você começa a escrever, normas e regras recaem sobre você, ditando o que fazer ou não, o que é um bom ou um mau livro. Essas regras são difíceis de descrever, porque funcionam como as regras de gênero: ao nascer e ser percebido como homem ou mulher, ninguém lhe dá um manual de como falar, como se comportar, não há uma polícia do gênero que circula pela rua, não há placas sinalizando o que você deve fazer. Mas a sociedade o molda a cada instante. A literatura funciona da mesma forma.
Quando comecei a escrever, senti essas regras pesando sobre mim: a ideia, por exemplo, de que um livro não pode ter muita emoção. Eu lia críticos elogiando obras por serem “sem sentimentalismo” ou “sem miserabilismo”. Pelo contrário, a cultura popular é frequentemente desprezada pela elite por ser vista como muito sentimental: as telenovelas para os operários com as emoções exaltadas, os romances “baratos” que fazem chorar. E eu, que chegava ao mundo literário vindo de um mundo brutalmente violento, me perguntava: como escrever sobre a vida da minha mãe ou do meu irmão sem fazer um livro que faça chorar? Meu irmão morreu aos 38 anos por causa do álcool e da pobreza. Se eu escrevesse sem emoção, estaria traindo sua história.
Da mesma forma, diziam que um livro não pode ser “muito político”. Se fosse, não era literatura, mas um “panfleto” ou “manifesto”. Como contei em Quem matou meu pai?, na minha infância, uma reforma política de Sarkozy ou Macron, cortando auxílios sociais e medicamentos, mudava radicalmente nosso cotidiano, nos impedia de comer ou nos tratar. Por pertencer às classes dominadas, a política fazia parte da nossa vida íntima. Já se você pertence à burguesia, com dinheiro, diplomas e conhecimento, você está protegido da política, ela não te impede de se alimentar ou ter acesso à saúde, você não precisa do Estado para isso. Talvez porque a maior parte dos escritores venha das classes dominantes, eles digam tanto que a política não deve estar presente na literatura. Porque, para eles, a política é algo periférico.
Logo me dei conta de que para escrever sobre o mundo da minha infância, precisaria fazer uma arqueologia da literatura: escavar e quebrar cada regra, para fazer emergir histórias que a literatura tradicional exclui.
3- Quais autores e obras mais marcaram sua formação como escritor? De que forma essas influências aparecem no seu texto?
Jamaica Kincaid, Anne Carson, Jean Genet, Marguerite Duras, Annie Ernaux, Hélène Cixous, Claudia Rankine, Didier Eribon. Esses autores me ajudaram a compreender que o íntimo é uma arma de disputa política, uma forma de lutar contra a violência. A partir deles, tento aprofundar ainda mais a escrita do íntimo e criar um “intimismo” literário. O intimismo é político, comovente e explícito — tudo o que a literatura tradicional rejeita.
4- Você esteve no Brasil há alguns meses, participou da última edição da FLIP e de outros eventos literários. Como foi seu diálogo com os leitores brasileiros? Por que você acredita que sua obra reverbera tanto neste contexto sociocultural?
Grande parte do público europeu que lê literatura está sufocada pelos próprios privilégios. Na França, Alemanha e Inglaterra, a maioria dos leitores pertence à pequena burguesia culta. Não são todos, mas é a maioria. E, às vezes, sinto que esse público não compreende bem isso que eu busco fazer: uma literatura intimista de combate, uma literatura da violência, que coloca a política na vida cotidiana. O Brasil, com sua história recente turbulenta, com fenômenos políticos violentos, como a presidência de Bolsonaro, que ainda sofre os impactos do colonialismo europeu, não está tão sufocado pelos privilégios quanto os leitores europeus. Muitos leitores brasileiros compreendem o peso da violência, da homofobia, da realidade dos problemas políticos. E são exatamente essas questões que busco explorar nos meus romances.
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A ESTANTE DE ÉDOUARD LOUIS
Primeiro livro que li: Harry Potter, de J.K. Rowling
Livro que estou lendo: Nietzsche e a Filosofia, de Gilles Deleuze
Livro que mudou minha vida: Retorno a Reims, de Didier Eribon
Livro que eu gostaria de ter escrito: Luz em agosto, de William Faulkner
Último livro que me fez chorar: Mr. Potter, de Jamaica Kincaid
Último livro que me fez rir: Extinção, de Thomas Bernhard. Bernhard é o único autor que conseguiu me fazer rir, pois não gosto muito do riso na literatura.
Livro que não consegui terminar: Muitos livros, por boas ou más razões.
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