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Entrevista: Carola Saavedra

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A escritora Carola Saavedra já é conhecida dos Taggers de longa data. Seu livro Com armas sonolentas foi enviado na TAG Curadoria em 2022, indicado por Carlos Eduardo Pereira. A obra logo se tornou um dos títulos queridinhos do clube, com nota 4.3 no aplicativo. Neste mês, ela está de volta indicando um romance visceral que acompanha mulheres através das gerações.

Carola adotou o realismo onírico no conjunto de sua obra. No estilo, as fronteiras entre o real e o sonhado se dissolvem, criando uma atmosfera ao mesmo tempo mística e vívida. Nas palavras de Saavedra: “não importa se as coisas aconteceram no inconsciente ou na ‘vida real’, para a psique, tudo é verdade”. O deslocamento também é um tema recorrente nas obras da autora. Natural de Santiago do Chile, Carola Saavedra se mudou para o Brasil ainda na infância e, desde então, não parou de viajar. Morou na Espanha, na França e, atualmente, vive na Alemanha, onde leciona na Universidade de Colônia. Leia abaixo a entrevista completa com Carola Saavedra e suas indicações de leitura.

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1- Em 2022, enviamos seu livro, Com armas sonolentas, aos associados da TAG Curadoria. Assim como o livro que você indicou, é uma história que transcorre a partir da experiência de personagens mulheres de diferentes gerações, investiga o feminino e navega por dimensões do inconsciente. Você vê pontos de contato entre as duas narrativas?

Sim, acho que o principal ponto de contato é esse mergulho nos aspectos mais profundos e misteriosos da psique das personagens, nisso que não é óbvio, que não é claro, nessa ambiguidade insustentável da palavra. E de como isso vem à tona, talvez o que haja em comum seja isso, uma cartografia do que vem à tona a partir daquilo que não foi falado nas famílias, do que passa de geração em geração, seja como escrita-sintoma no corpo, seja como ato-sintoma na vida. Há sempre algo que se sabe sobre essa história familiar, algo que se escreve, mesmo que tentemos ignorar.

2- Há cada vez mais mulheres escrevendo e sendo reconhecidas no meio literário. Como você enxerga esse momento da literatura contemporânea no Brasil? Em que aspectos ainda precisamos avançar?

Houve uma clara mudança de paradigma na literatura brasileira a partir de 2010, 2015, para ficar só nos números, basta fazer uma análise dos principais prêmios literários, se até então era raro ver mulheres entre os finalistas, mais raro ainda era que fossem premiadas. Também houve um aumento no número de mulheres publicadas pelas principais editoras do país, outro marcador dessa transformação. Isso não é algo isolado, claro, é reflexo das políticas identitárias, um movimento que vem se dando em muitos lugares, e com muita força na América Latina.

É claro que se trata de um processo que está apenas começando e que não se dá de forma linear nem progressiva. E apesar das grandes mudanças, há ainda muita coisa ainda a ser feita, especialmente no que diz respeito ao racismo, ou seja, ainda estamos longe de um feminismo que considere a voz e a escrita das mulheres negras e indígenas. Aliás, acho que este é o principal aspecto para o qual devemos olhar, nos afastarmos de um feminismo liberal de mercado, que tudo engole e transforma em produto, para construirmos uma literatura que realmente dê espaço para outras vozes: mulheres negras, indígenas, lésbicas, pessoas trans, não binárias, e todas as demais dissidências. Não digo isso como uma espécie de benevolência, ao contrário, a literatura só tem a ganhar, a se enriquecer quando incluir outras diversidades.

3- Você mora há alguns anos na Alemanha, pesquisando e lecionando literatura e estudos culturais no Instituto Luso-Brasileiro da Universidade de Colônia. Como é escrever e integrar a cena literária brasileira estando fisicamente longe do Brasil? Em que medida esse olhar de fora traz desafios e potencialidades para o seu trabalho? 

Hoje em dia a distância geográfica não é mais necessariamente uma distância cultural, aliás, acho que nunca estive tão próxima do Brasil como agora. Além de viagens constantes, algo que meu trabalho não só permite como exige, eu trabalho numa longa pesquisa sobre arte e literatura indígena, então apesar de morar na Alemanha, toda a minha atenção está voltada para o Brasil, especialmente para os povos originários nesse território, suas diversas culturas, narrativas e formas de resistência. Um aprofundamento que criou em mim uma série de deslocamentos no meu ponto de vista, talvez uma forma mais intensa de pensar a nossa história colonial e todo o movimento decolonial.

Em outras palavras, às vezes, surge esse olhar que o distanciamento geográfico intensifica, que é um olhar crítico para certas realidades. Funciona da mesma maneira quando nos afastamos de “casa”, percebemos melhor do que não gostamos e do que sentimos falta, também nos ajuda a lembrar quem somos. Talvez estes anos na Alemanha tenham servido para me lembrar o quanto eu estou ligada ao desenrolar da história colonial brasileira (e, mais amplamente, latino-americana), suas resistências, esse lugar ancestral, e do quanto esse espaço é a minha casa. Resultado disso é, num aspecto literário, o meu romance mais recente O manto da noite, uma espécie de viagem onírica pelo passado (ancestral) e futuro (distópico) do continente.

4– Um dos temas que atravessa sua escrita é a experiência de viver em um mundo em destruição e as formas de se relacionar com nosso tempo sob diferentes perspectivas e modos de vida. Como podemos cultivar a criatividade nesse cenário de catástrofe climática, e o que podemos aprender com os povos originários nesse sentido?

Acho que o principal a se aprender com os povos originários é o respeito por esses povos, permitir coisas básicas como o direito à vida, à própria língua e cultura. Digo isso porque é importante lembrar que o saber dos povos indígenas não pode ser mais um produto a ser consumido, a busca por esses saberes precisa em primeiro lugar estar integrada com políticas que permitam a sobrevivência desses povos. Porque se eles sobreviverem se manterá também a floresta, as florestas em geral, e tudo o que vive nelas, e se isso sobreviver, aumentam as nossas chances também.

Agora, para além desse aspecto, há sim muito a aprender, o principal é a forma como lidamos com a natureza, com o planeta, e especialmente com a alteridade. Se olhamos para o outro como algo ou alguém que só existe para nos servir ou se seremos capazes de compreender (e atuar) que toda relação, não importa se com outro ser humano, com animais não humanos, com uma montanha, um rio ou com o próprio planeta deve ser sempre uma relação horizontal, de trocas justas, para que todos possam continuar neste mundo.

A ESTANTE DA CURADORA

Livro que estou lendo: 

Costumo ler várias coisas ao mesmo tempo: As aventuras da China Iron, de Gabriela Cabezón Cámara. Na verdade é uma releitura, mas como é um dos livros que me marcou muito nos últimos tempos, sempre volto a ele. Há muito a dizer sobre o livro, mas aponto o aspecto que mais me interessa que é uma história que narra outras formas de amor, de amar, para além dos moldes hetero-patriarcais. 

Estou lendo também e gostando muito de Chamanes eléctricos en la fiesta del sol, de Mónica Ojeda (que eu saiba, ainda sem tradução para o português), é um livro também com muitos aspectos a comentar, mas destaco a construção de outras realidades, realidades oníricas que se desdobram em outras formas de habitar o mundo. 

Livro que mudou minha vida:

Muitos livros mudaram a minha vida, mas para citar apenas um, escolho A bolsa amarela, da Lygia Bojunga. Outro dia fui ler esse livro para a minha filha e fiquei completamente espantada com a qualidade literária, é uma obra prima, mas não só isso, compreendi o quanto esse livro marcou a minha escrita e a minha visão de mundo. E fiquei surpresa com as semelhanças, a protagonista era uma menina que tinha três desejos na vida, ser adulta logo para poder sair de casa, ser um menino para poder usufruir da liberdade que só os  meninos tinham, e ser escritora. É um livro que fala de depressão, melancolia, relações abusivas, e também aborda de forma indireta questões como desigualdade social, repressão, ditadura, etc. É preciso muito talento para criar um livro assim, escrever para crianças é dificílimo.

Livro que eu gostaria de ter escrito

Não há nenhum livro que, por mais que eu admire, gostaria de ter escrito. É que para escrevê-lo eu teria que ter sido essa pessoa, passado pelo que ela passou, ter lido o que ela leu, e eu estou bem com quem sou. Nesse sentido, poderia dizer que os livros que eu queria ter escrito são aqueles que escrevi. Não porque eles sejam melhores ou piores do que outros, mas porque eles são o resultado da vida que tenho vivido, e com todos os problemas que ela tenha, (quem não os tem?) é uma vida interessante, e o que mais a gente poderia querer do que ter uma vida interessante?

Último livro que me fez chorar

Foi Instruções para morder a palavra pássaro, livro de poemas de Assionara Souza. A Nara foi uma escritora e poeta de Caicó, Rio Grande do Norte, mas radicada em Curitiba, uma grande escritora, aliás recomendo muito também o seu livro de contos Cecilia não é um cachimbo. Mas o que me fez chorar foi entrar numa livraria ano passado e me deparar com o livro de poemas, não esperava. Trocamos mensagens por muitos anos, ela faleceu em 2018. Combinamos muitas vezes de nos encontrar, quando eu fosse a Curitiba, nunca nos conhecemos pessoalmente, e eu fico pensando em como teria sido. Mas nas palavras o encontro nunca deixou de acontecer.

Último livro que me fez rir: 

Interessante, pensei muito, mas não consigo me lembrar de um livro que tenha me feito rir de verdade (não apenas um sorriso). Talvez isso diga algo sobre a dificuldade do humor na literatura, ou mais provavelmente, sobre as minhas escolhas literárias.

Livro que não consegui terminar: 

No caminho de Swann (primeiro volume de Em busca do tempo perdido), de Marcel Proust, é um livro maravilhoso, mas a verdade é que já retomei a leitura várias vezes e nunca consigo terminar. Acho que tem livros que precisam ser lidos no tempo certo, que é sempre um tempo intuitivo. Acho que este é um desses casos.

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