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Entrevista com Adriana Lisboa: “A tradução é uma espécie de dança”

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A escritora e tradutora Adriana Lisboa nasceu em 1970 no Rio de Janeiro, onde morou a maior parte da sua vida. Formada em música pela Uni-Rio, trabalhou no meio musical como cantora e professora de flauta antes de decidir estudar Literatura Brasileira. Obteve o diploma de mestrado e, em seguida, o de doutorado em Literatura Comparada, os dois pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Ao seu primeiro romance, Os fios da memória (1999), se seguiu o vencedor do Prêmio José Saramago Sinfonia em branco (2001), outros quatro livros adultos e três infanto-juvenis. Como tradutora, trabalhou com autores como Margaret Atwood, Amós Oz, Maurice Blanchot, Cormac McCarthy e, mais recentemente, com o livro A câmara sangrenta e outras histórias (2017), de Angela Carter, enviado em março pela TAG – Experiências Literárias exclusivamente aos associados do clube.

Em 2000, a editora Rocco publicou The bloody chamber (1979) sob o título O quarto do Barba-Azul. Você poderia nos explicar melhor por que decidiu alterar para “A câmara sangrenta”?

Com relação ao título, eu achei que funcionava ser fiel ao original, e os editores concordaram, então fomos de “A câmara sangrenta” mesmo. Não me parecia haver motivo para não fazer isso.

Como foi o processo de tradução do livro? Surgiram outros impasses?

O principal desafio do livro foi, como acontece na maioria dos trabalhos de tradução, o compromisso em funcionar como uma espécie de dobradiça entre dois idiomas. Quem importa não sou eu, o que importa é o texto final em português. Angela Carter tem um estilo bastante peculiar, e mesmo nessa coletânea de contos ela faz experiências diversas. O importante era manter-me transparente e permitir que sua literatura fosse recriada no nosso idioma, com toda a sua opulência. Felizmente o português é uma língua que se presta bastante bem a isso. Um conto particularmente difícil foi o do Gato de Botas, que tem um humor bem debochado e erotizado, e nem sempre as soluções saltavam aos olhos na hora de traduzir.

Em um post de 2013 do seu blog, referente à futura publicação de Hanói, você comenta que “Tudo é devagarinho para quem escreve ficção em português. Mas por isso mesmo cada passo é uma festa”. Em sua opinião, quais são os desafios atuais de quem escreve em português? Você diria que eles são diferentes quando levamos em conta o fator gênero?

Escrever em português é uma dor e uma delícia. Sofremos de cara no próprio país, que prefere o que vem de fora. Depois, vêm os editores estrangeiros e esperam que o autor brasileiro assuma a tarefa de “explicar o Brasil,” do contrário raramente interessa. E faltam leitores de português nas editoras estrangeiras, de modo que às vezes já se esbarra nessa dificuldade tão básica de saída – a dificuldade de avaliar um livro escrito originalmente em português. Não sei dizer, sinceramente, se o fator gênero faz alguma diferença, nesse caso. Por sorte contamos com bons incentivos durante vários anos, como as bolsas de tradução da Biblioteca Nacional.

Em 2008, você publicou um artigo chamado Escrever no Brasil depois de Clarice Lispector: armadilhas ficcionais. Assim como Toni Morrison, diversas escritoras contemporâneas não reivindicam o status de literatura feminista para sua obra e até rejeitam o de literatura feminina. No texto, você argumenta que “Não é crime que os diversos movimentos sociais se valham da literatura em nome de suas causas. O movimento inverso, porém, é extremamente simplista, se não pernicioso”. Em que medida você acredita que uma escritora deveria fugir dos rótulos de “literatura feminista” ou “literatura feminina” para se afirmar no campo literário?

Não acredito em literatura como bandeira de nada. A literatura não é “para”. Não pode se comprometer com nenhuma causa para lá do cuidado e da ética para com o próprio trabalho literário, com as próprias palavras. Os temas ditos “femininos” não precisariam desse rótulo, até porque fica difícil saber onde parar (por exemplo: publiquei um poema sobre a clitorectomia na Somália, e na época isso causou certa polêmica entre os leitores de uma revista, porque não sou africana nem muçulmana – e daí começamos a sobrepor mais rótulos aos rótulos). De modo geral, acho que na minha obra temas como o afeto, num sentido amplo, e o deslocamento são mais importantes do que os temas habitualmente considerados “femininos”. Eu não acredito em autores ou autoras reivindicando rótulos para o seu trabalho. Acredito, ou não, na qualidade desse trabalho, que nada tem a ver com o fato de serem feministas ou femininos ou outra coisa qualquer.

Em 2008, você publicou o livro infanto-juvenil Contos populares japoneses. No prefácio de A câmara sangrenta, você escreve que Angela Carter recusa o rótulo de “contos de fadas para adultos”. Durante o trabalho de tradução, você viu algum paralelo entre a repaginação dos contos clássicos e o seu livro acerca da literatura oral nipônica? Quais seriam essas aproximações?

Meu livro de contos japoneses é uma obra muito pouco pretensiosa. Eu estive no Japão com uma bolsa de pequisa em 2006, para escrever o meu romance Rakushisha, e comprei de presente para o meu filho, então com oito anos, uns livrinhos de histórias da tradição oral. Meus recontos foram um desejo de continuar habitando por um pouco mais de tempo aquele universo, então tão presente na minha vida. No caso de Angela Carter, ela realmente revoluciona os contos, transforma-os em outra coisa, são suas histórias, apenas tomando como ponto de partida o universo dos contos de fadas. Além disso, o meu livro usa uma linguagem muito simples, porque pensei nele como uma espécie de leitura “censura livre”, uma opção estética também radicalmente distinta da que fez Angela Carter, com suas frases rebuscadas, ornamentadas, cheias de luz e sombra, tão densas que a gente chega a sentir sua textura, e tão fortemente erotizadas.

Assim como Angela Carter, você passou por uma importante experiência no Japão. Em muitos de seus romances, a crítica literária enxerga aspectos que se relacionam com o silêncio e a migração – considera-se, inclusive, que isso é uma característica dos romances contemporâneos. O que você pensa a respeito disso?

A migração faz parte da minha vida há muito tempo. Moro nos Estados Unidos faz mais de dez anos, com breves passagens por outros lugares antes disso (tive experiências absolutamente transformadoras em meus breves perídos no Japão e em Cuba), e estou de mudança para a Nova Zelândia – que, aliás, é um país de impressionantes silêncios, algo que me fascina. Essa experiência do desenraizamento, por mais que venha sempre tingida de um matiz doloroso, já que equivale a diminuir ou mesmo perder o contato com pessoas e lugares que marcaram nossa vida, por outro lado é um exercício de despojamento e de tolerância. Olhar para o outro é o gesto mais difícil e urgente do mundo. Vivemos um tempo de autoexposição atroz e de falatório estonteante, inteiramente voltados para o “eu” que fala. Nesse sentido, a migração é uma oportunidade de convívio com o diferente, me obriga a distender a minha capacidade de compreensão e tolerância, me obriga a tirar a venda dos olhos e a me despojar dos meus preconceitos. E me parece imensa a importância do silêncio para que, inclusive, seja possível melhor ouvir esse outro. De todo modo, o silêncio tem, para mim, um valor em si – um valor positivo. O silêncio fala, por assim dizer.

Você já traduziu O morro dos ventos uivantes (1847), de Emily Brontë, assim como Uma voz vinda de outro lugar (1992), de Maurice Blanchot. Quais são os desafios, nesses dois casos, como tradutora e escritora, de traduzir duas línguas tão diferentes e obras tão distantes temporalmente?

O principal desafio é o da modéstia, eu diria. Um tradutor tem que ser modesto. O que não significa que não deva ser ousado. Às vezes é preciso dar cento e vinte na estrada com o seu fusquinha. Mas o ideal é que sejamos quase invisíveis. A sofisticação dos ensaios de Banchot é uma tarefa delicada para qualquer tradutor, que não pode errar na mão em nenhum momento. Foi um livro que traduzi frase a frase, como se trabalhasse com ourivesaria. Já o clássico de Emily Brontë é como correr uma maratona, um convívio longo com uma obra literária de uma intensidade aterradora. E, também aqui, o que importa é manter o máximo de fidelidade sabendo que a fidelidade absoluta não existe, não apenas pela questão da transposição idiomática, mas temporal também. Para terminar com uma última imagem: é uma espécie de dança, em que a gente ora se aproxima, ora se afasta um pouco, mas somos sempre nós em companhia do outro. Diferente do processo de criação, em que voamos sozinhos, mas em companhia do mundo inteiro.

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