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Entrevista: Bahiyyih Nakhjavani, a iraniana recém-lançada no Brasil

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Bahiyyih Nakhjavani, autora integrante da diáspora iraniana, exerce importante papel decifrando assimilações e experiências das comunidades exiladas por meio de seus livros. Nascida no Irã em 1948, mas criada fora do país, Nakhjavani é ex-professora e atualmente escreve ensaios e romances. Toda sua obra é inspirada na cultura, história e “personalidade” iranianas, o que demonstra engajamento com as questões de sua terra natal.

Sua trajetória somente começou no Irã, mas se desenrolou inteiramente fora de lá. Carrega um forte sotaque britânico, que denuncia sua formação, e também passou pelos Estados Unidos, Chipre, França e Uganda, país da sua primeira e “idílica” infância. Seus pais foram ao país africano professar a fé Baha’i, uma religião de princípios islâmicos que, à época, crescia no mundo. A escritora manifesta a religiosidade, herança dos avós, até hoje.

Entrevistamos a escritora, que acaba de ter sua obra publicada no Brasil pela primeira vez com exclusividade aos associados da TAG: na caixinha de fevereiro da TAG Curadoria, enviamos o livro O alforje, escolhido pelo curador Alberto Manguel. O livro ganhou tradução de Rubens Figueiredo e uma edição especial em capa dura.

Kit de fevereiro da TAG Curadoria

TAG – Você afirma que O alforje tem uma relação de intertextualidade com livros sagrados de diferentes religiões. Como você pesquisou esse material?

Bahiyyih – Pesquisei como se pesquisa qualquer outro assunto: através da leitura, pesquisando/investigando textos, absorvendo o máximo possível dos livros sagrados de diferentes religiões. Para essa história em particular, pesquisei especificamente as palavras “autênticas”, a mensagem “espiritual” atribuída a seus fundadores, porque eu sempre estive mais interessada em misticismo do que em teologia, no compartilhamento de princípios morais do que em diferenças entre doutrinas. Criada em uma família Baha’I, fui encorajada desde a infância a ver as aparentes contradições entre religiões como diferentes expressões de uma mesma verdade, como caminhos diferentes que levam ao mesmo destino/objetivo. Em O alforje, quis transmitir a rica diversisdade de tradições religiosas no mundo e o âmago espiritual comum que todos dividem. Além do mais, eu estava fascinada pelo recorrente tema do juízo final em tantas escrituras sagradas, a noção de que há um dia para acertar as contas no qual todos nós deveríamos reconhecer. Eu me perguntei “e se” esse dia fosse como qualquer outro, que a maioria de nós nem perceberia que estivesse acontecendo? “E se” ele fosse desencadeado por uma aparente coincidência, afetando um personagem após o outro em um mesmo lugar no curso de vinte e quatro horas, como um tipo de reação nuclear? Todas as histórias são, de fato, aquele “Dia” para os personagens que as protagonizam e, como muitos escritores, eu estava, para todos os efeitos, brincando de Deus! Espero ser perdoada!

TAG – O alforje é narrado a partir múltiplos pontos de vista. Você pode explicar sobre esse mecanismo e como ele funciona para você?

Bahiyyih – Os diferentes usos de ponto de vista caracterizam o enredo e o clima de diferentes romances. Eu escrevi O alforje sob a perspectiva do narrador onisciente, usando a chamada “Terceira pessoa ilimitada” para resumir o passado, entrar nos sentimentos do presente e ainda sugerir o futuro de nove personagens. No meu segundo romance, “Paper”, o escriba, que é o protagonista, tem um ponto de vista dominante, e no meu terceiro, The Woman Who Read Too Much, existem quatro diferentes perspectivas emblemáticas dos quatro papéis da mulher como mãe, filha, irmã e esposa. Cada uma oferece um ponto de vista em terceira pessoa limitada, do qual observa a figura central da história. Os personagens são inspirados em quatro personalidades reais do Irã do século 19, que viveram na época da Fatimeh Baraghani. Porém, o meu último romance, “Us & them”, é uma sátira contemporânea sobre a diáspora iraniana nos dias de hoje, e aqui a voz do “nós” aparece em conjunto com a narrativa do “ela/ele”. Intercalando entre os capítulos da história sobre idosa que deixa o Irã e viaja entre as casas de suas duas filhas em Paris e Los Angeles. Há monólogos coletivos usando o ponto de vista do “nós” para espelhar as múltiplas facetas da psiquê persa ao redor do mundo. Sou fascinada pela maneira com que esse mecanismo ajuda a escrever diferentes histórias, a ver diferentes facetas de personalidades, e a projetar diferentes luzes em diferentes tempos.

TAG – As pessoas de seu credo – a fé Baha’I – vivem uma situação complicada no Irã. Você acha que a intolerância religiosa afeta a produção literária em seu país?

Bahiyyih – Essa é uma questão que provoca o pensamento; obrigada por fazê-la. A situação dos Baha’is no Irã é, de fato, complicada, e contraditória. Essa comunidade é a maior minoria religiosa não reconhecida no país: começou no Irã, tem suas raízes no Irã, e seu vasto corpo de literatura é enriquecido pela cultura persa. E, mesmo assim, por causa tanto de sua visão global e quanto de seus princípios modernistas, é considerada pelo atual regime um anátema, uma apostasia, uma implantação estrangeira. Como resultado, os Bahai’s no Irã são severamente perseguidos. Eles têm o direito à educação negado, passam por estrangulamento econômico e são presos ou mortos com base em acusações tortas. Mas, enquanto a liberdade é restrita e a vida, comprometida, a situação Baha’I também é clássica. Há grupos perseguidos em todo o mundo, infelizmente. Minorias como os Yazidis, os curdos e os Rohingya, apenas para nomear alguns, suportam “complicações” aterradoras. De fato, o problema é endêmico: minorias têm sido sujeitadas a violência, opressão e preconceito cego em todos os lugares, através da história. Em outras palavras, a situação dos Baha’I não é única.

Sobre a segunda parte de sua pergunta – como a intolerância religiosa afeta os escritores? Quais são as consequências do fundamentalismo na arte? – esses desafios são um teste para a coragem e a honestidade de todos os iranianos, dentro e for a do país. Qualquer pessoa familiarizada com o “novo” cinema iraniano, por exemplo, pode ver o nível de beleza e sutileza que ele consegue atingir mesmo sob censura. E, enquanto certos escritores copiam gêneros ocidentais ou sensacionalizam sofrimento e tortura de modo a representar o Irã como uma prisão, outros têm a coragem de destacar uma história diferente. Shabnam Tolouie, uma atriz Baha’i que precisou sair do país por conta da perseguição, dirigiu em 2016 um filme lindamente poético e escrupulosamente objetivo sobre a coragem e a visão de Tahirir Qurratul’-Ayn, que foi completamente erradicado da história persa atual. Mahvash Sabet, poeta Baha’I que foi solto depois de 10 anos na prisão, foi recentemente reconhecido como um “Escritor de Coragem” por Michael Longley, ganhador do prêmio PEN Pinter de poesia, em outubro de 2017. Mais e mais artistas, ativistas e mesmo clérigos iranianos têm se posicionado pelos direitos dos oprimidos no Irã, seja por meio de arte e filme, seja por reportagens e livros. Eles têm sido extraordinariamente bravos ao apontar essas injustiças. E, se eles conseguirem transmutar intolerância em confiança, se, em vez de privilegiar a vitimização, o trabalho deles consegue ser livre de amargura, ressentimento ou desejo por vingança, isso certamente é um sinal de alto nível de criatividade; é prova do poder da surpresa artística latente em uma cultura.

TAG – O conceito de relatividade, pilar da filosofia Baha’I, pode ser reconhecido na estrutura do livro. Você pode falar como sua fé influencia sua arte?

Bahiyyih – Não vejo diferenças entre minha fé e minha arte. Os dois estão juntos, como o ar e a água que ambos precisam para sobreviver. E, já que qualquer fé que vale a pena tem a ver com o que você faz, não com o que você diz, a estrutura daquilo que escrevo reflete invariavalmente os conceitos Baha’i.

Um conceito que definitivamente me influenciou, como você aponta, é a noção de relatividade, de continuidade da verdade e de sua natureza progressiva. A perspectiva Baha’i sobre o relacionamento das diversas religiões no mundo é paralela à fundação da narrative linear para mim. Metaforicamente falando, religiões diferentes são como capítulos subsequentes em um livro que nunca termina. Isso é particularmente apropriado em O alforje, em que cada capítulo explora uma tradição religiosa diferente, uma interpretação religiosa diferente dos mundos descobertos pelos protagonistas.

Outro conceito Bahai’, muito satisfatório para um escritor, é como percebemos a verdade. Em outras palavras, a verdade é tão vasta, tão imensa, que somente podemos percebê-la de forma parcial e, mesmo assim, de pouco a pouco. Longe de admitir uma miríade de “verdades” diferentes e contraditórias, portanto, a ideia Baha’I é que há, em vez disso, uma míriade de perspectivas diferentes e aparentemente contraditórias sobre a verdade. Confundir nossas limitações com possibilidades, como escreveu Golding, é minar a história. O lugar, o tempo, os eventos do dia e da noite são os mesmos em O alforje, mas todos os personagens “leem” o enredo de maneira diferente.

Tão logo conseguimos reconhecer diferenças como expressão não de limitação, mas de riqueza e de variedade, podemos sentir pelos personagens, nos atraímos por eles não importa o quão corruptos eles possam ser. E, sem essa atração, sem essa habilidade de se identificar com essas ficções, quem gostaria de ler o livro? A lei do amor governa a todos, das estrelas à sintaxe, e, se a escrita pode inspirar amor para a humanidade em vez de desgosto, inspirar amor pelo planeta em vez de cinismo, amor pelo mistério que é a fonte criativa de ambos, em vez de negação – há chances de uma história funcionar.

Então, será que minha fé influencia minha arte? Ou será que ela é, na verdade, intrínseca a ela? Eu não sei. Tudo o que sei é que pensar muito a respeito disso produz propaganda em vez de literatura!

TAG – Sua ficção trata os temas de imigração, exílio, identidade e diásporas. O que você pensa da atual situação de imigração iraniana?

Bahiyyih – Há um velho adágio: escreva sobre o que você sabe. É o que faço, sem tentar. A maior parte de meus romances é ou sobre jornadas, viagens e movimento, passados em fronteiras e cruzamento de limites, ou abrangem liminaridade, transformação, os desafios da mudança nas vidas dos indivíduos, das famílias e da sociedade. Meu histórico familiar tem muito a ver com desenraizamento e enxerto cultural; fomos nômades, imigrantes, exilados por gerações. De fato, alguns de meus ancestrais fugiram primeiro da Pérsia na dinastia Qajar pela perseguição religiosa apenas para serem banidos para a colônia penal do Império Otomano, na Palestina, no século 19. Mas, ao contrário de meus compatriotas que deixaram o Irã em décadas recentes por razões políticas ou econômicas, a migração em minha família foi uma escolha espiritual na qual embarcamos livremente, foi uma decisão de promover o ideal do mundo como se fosse um país apenas e a humanidade, seus cidadãos. Minha obsessão literária com a liminaridade, por sua vez, tem menos a ver com a situação dos iranianos fora do país – eles são um dos grupos de migrantes mais exitosos e bem assimilados em qualquer lugar, por sinal – do que com o fato de que a imigração se tornou uma das questões críticas do nosso tempo. Escrevo sobre suas várias manifestações porque quero enteder mais o impacto da imigração e do exílio em nossas sociedades, porque quero testemunhar sobre assuntos como inclusão e exclusão de forma mais completa, como algumas das questões mais urgentes do nosso tempo.

 TAG – Qual é o maior desafio de sua carreira como escritora?

Bahiyyih – Responder a perguntas de entrevistas! Não estou brincando, esse é o aspecto mais difícil para mim na carreira de escritora – falar de mim mesma, minhas ideias, meus motivos para escrever. Eu prefiro falar sobre personagens de um livro e promover a importância da literatura!

TAG – Imagine que mais de 20 mil brasileiros receberão esse livro ao mesmo tempo. O que você gostaria de dizer a ele neste momento?

Bahiyyih – Primeiramente, obrigada, queridos leitores: obrigada pelo seu tempo, sua confiança, sua vontade de suspender a descrença apenas o tempo suficiente para abrir estas páginas. E, em segundo lugar, eu espero que vocês gostem dessa história: eu espero que ela os introduza a almas estranhas mas inesquecivelmente familiares, a aquela amável, leve, elevada sensação que por vezes vem ao nosso encontro em sonhos, vindo de mundos muito distantes. Histórias que são como uma pessoa oferecendo a mão para outra, dizendo ‘venha comigo’, ‘vamos a outro lugar’, ‘vamos caminhar juntos’. Para mim, será uma grande honra caminhar por essas páginas na companhia de vinte mil brasileiros!

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