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O avesso dos outros

Nelson Rodrigues Nelson Rodrigues Share this post

Peguei o livro com o intuito de escrever este texto. Quero dizer, da leitura de O casamento, eu tinha de extrair uma lauda ou coisa que o valha para o deleite dos leitores da TAG. E sentei-me, num domingo, comecinho de tarde, com o único romance escrito pelo Nelson Rodrigues na varanda da minha casa.

No livro, uma das instituições mais sagradas da sociedade é pano de fundo para o drama da família Maranhão. Drama, aliás, mais focado na figura do patriarca, um empresário rico, de nome Sabino, cuja filha predileta, Glorinha, vai contrair… matrimônio. Sabino é um homem magro, que tem “as costelas de Cristo” e pratica o ato amoroso em silêncio. Pois este homem, tão bem-composto, que anda pelas ruas cariocas no seu carro com motorista, que distribui dinheiro aos genros na véspera do casamento das filhas; este homem que só pôs no mundo mulheres, cioso das suas raparigas e da sua santa esposa, este homem vai descendo a ladeira, página por página, neste drama rodriguiano.

Sucede que Sabino, a partir de uma visita do médico da família – o dr. Camarinha faz-lhe uma terrível confissão sobre seu futuro genro – mergulha em um vórtice de memórias, perversões, medos e adultérios que me deixou de cabelos em pé. E – sim, senhor – levemente constrangida. Famosa é a frase de Nelson, que, no romance, sai da boca do Monsenhor que oficiará o casamento de Glorinha: “Se todo mundo conhecesse a vida sexual do outro, ninguém se cumprimentava”.

Gostei deveras de encontrar este dito no romance, porque é uma frase na qual penso sempre. Nas festas, nas ruas, nas palestras, sempre penso no avesso dos outros, aquele que fica sob os lençóis, atrás da porta, nas escadas de incêndio, nos quartos de aluguel desta vida. É assim em O casamento, com impressionante agilidade, Nelson vai desnudando um a um os personagens (e a nós mesmos por tabela), num turbilhão de acontecimentos tão bem engendrados que fazem saltar aos olhos o genuíno talento deste que foi um dos nossos maiores dramaturgos.

Um livro que provoca engulhos e também faz rir. Uma história onde a vida se potencializa, onde as arestas furam, espetam, doem. Mais real que a própria vida por vezes, e é assim que sentimos a boa literatura – na pele. Fogo, água, tapa e beijo. Nelson Rodrigues não assopra nunca: o leitor que se aguente. O leitor que se salve, como se salvará o temerário casamento de Glorinha e de Teófilo, porque, como diz o personagem de Sabino Uchoa Maranhão: “casamento não se adia”.

Glorinha, que não tem nada de santa (como nenhuma das mulheres rodriguianas), mas cuja inocência respinga na gente o tempo todo, de modo que é impossível não querê-la bem, vai casar sim-senhor! Sabino entrará na igreja levando a filha pelo braço, pálido feito um santo. Só depois disso é que ele haverá de tomar as devidas providências em prol da sua paz de espírito, aquela que foi perdendo desde a primeira página deste romance ímpar.

Como eu escrevi no começo, foi a minha leitura de domingo. E domingo, antigamente, era dia santo. Um dia ideal para desfrutar desta joia bruta, bonita e difícil de engolir, com a qual nos presenteou o Nelson Rodrigues. Fui dormir meio desconfiada, da vida, dos outros e do casamento. Mas, afinal de contas, os amores bem-sucedidos não interessam a ninguém. Palavras do Nelson Rodrigues.

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