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O elogio da ambiguidade

Ilustração de Tiago Berao para a edição de Vitória feita pela TAG Ilustração de Tiago Berao para a edição de Vitória feita pela TAG Share this post

A maior charada crítica da literatura brasileira é também a mais popular: Capitu traiu ou não traiu Bentinho? A verdade é que, reféns de um narrador interessado e bandeirosamente inconfiável, nunca saberemos. A indeterminação que mora no coração de Dom Casmurro é uma ventoinha que não para de girar: quando respondemos que sim, é não; e vice-versa. (A resposta mais satisfatória para mim é que não sabemos, mas, se traiu, foi bem feito.)

A ambiguidade insolúvel responde por grande parte da grandeza artística de um romance que, sem ela, correria o risco de ser rebaixado a uma competente trivialidade romântica (ah, a injustiçada esposa virtuosa!) ou realista (ah, o adultério e seus desdobramentos trágicos!). Muita gente boa já disse que à literatura não cabe oferecer respostas, mas formular perguntas interessantes. A verdade humana raramente é unívoca.

Esse elogio da ambiguidade está aqui para enfatizar o valor incalculável de um livraço como Vitória. O romance é, disparado, o que mais me impressionou entre os que até hoje comentei nesta coluna (que também é ambígua – meio resenha, meio crônica ou papo de bar). Por isso mesmo, não cabe aqui. Não caberia se eu tivesse cem páginas para preencher.

Dá, isso sim, para começar a fazer uma lista (spoilers em profusão, cuidado) das ambiguidades que Joseph Conrad espalha sutilmente em Vitória, com uma sabedoria artística quase sobrenatural. A começar por estilo e estrutura da própria narrativa. Estamos diante de um romance de aventura ou de um romance de ideias? Um thriller de gelar a espinha, uma alegoria filosófica pessimista ou uma das mais belas histórias de amor já escritas?

Por que o livro começa a ser narrado em primeira pessoa por alguém que não chega a se constituir como personagem, em tom de crônica amena de certa região do Pacífico, se esse ponto de vista externo vai ser inteiramente abandonado no correr da narrativa? O livro faz a defesa da paixão e do envolvimento com a bagunça do mundo, condenando o isolamento e a superioridade moral inoculados no filho pelo pai de Axel Heyst, ou será o contrário?

Tem muito mais. A mulher de Schomberg é sagaz ou idiota, submissa ou secretamente altiva? Heyst e Lena-Alma seriam felizes se tivessem a chance de desfrutar seu paraíso particular em paz – ou estariam mortalmente aborrecidos em poucos meses? Wang é o empregado de Heyst ou um patrão disfarçado? Jones é loucamente apaixonado por Ricardo ou apenas misógino? Jones atira em Lena-Alma acidentalmente, como crê Heyst, ou de propósito? Qual é o verdadeiro nome de Jones? Que “vitória” é essa do título se o final é tão catastrófico para todos os personagens principais? Talvez seja ironia pura, mas, tratando-se de Conrad, eu não apostaria nisso. O mais provável é que o título seja irônico, sim – e ao mesmo tempo não seja irônico, não.

Cabe ao leitor meditar, refletir profundamente, sabendo que nunca encontrará as respostas definitivas. Grandeza literária é isso. E só para tornar tudo ainda mais ambíguo, enquanto estiver meditando e refletindo profundamente sobre essas coisas, o leitor pode aproveitar para meditar e refletir profundamente também sobre o que Conrad escreveu em sua “Nota do autor” de 1920 (página 11): “A meditação é a grande inimiga da perfeição. O hábito da reflexão profunda, sinto-me obrigado a dizer, é o mais pernicioso de todos os hábitos criados pelo homem civilizado”.

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