Resenha: Só Garotos – Patti Smith | Leia na TAG
Indicações de livros

Devoção

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Eu vi Patti Smith cantar com seus filhos na igreja de Saint-Germain-des-Près, em Paris, quase dez anos atrás. Lembro do contraste poderoso que era tudo aquilo – a perfomance de Because of Night dentro da igreja, as pessoas repetindo o refrão, rock n’ roll pulsando em um lugar normalmente tão silencioso e sagrado. Saí depois pelas ruas na noite de Paris, e era difícil separar Patti de todo o resto, daquela cidade que me emocionava tanto, embora eu tivesse chegado atrasada nela. Tinha perdido Céline, Camus, Beauvoir e Sartre, tinha perdido Toulouse-Lautrec e os impressionistas de Montmartre, o atropelamento de Roland Barthes, tinha perdido os americanos expatriados gravitando ao redor da Shakespeare & Company original e, mais tarde, os poetas beats no número 9 da Rue Gît-le-Cœur.

Na Nova York do fim dos anos 60, Patti Smith não perdeu quase nada. É o que as memórias contidas em Só garotos ­– uma homenagem ao seu ex-companheiro Robert Mapplethorpe – deixam evidente. O livro compreende sobretudo o período que vai de 1966 a 1975, época em que Patti e Robert estavam tentando se encontrar como artistas. Por suas páginas, desenha-se uma Nova York vibrante, por onde transitam figuras como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Andy Wharol e Jim Morrison. Patti Smith é a garota tímida que vê tudo isso acontecendo. Pelos quartos do mítico Hotel Chelsea, onde ela mora por um tempo, circulam artistas de vanguarda e sem grana, que se escondem do gerente Stanley Bard ou tentam pagar suas dívidas com arte. Mais tarde, Patti criará laços com Sam Shepard, Lou Reed, Allen Ginsberg e William Burroughs. Não é pouca coisa para uma menina que, por muitos anos, precisou decidir no cara ou coroa se ia comprar comida ou material para desenho.

Como um testemunho apaixonado de uma época muito emblemática na música e na arte, a leitura de Só garotos já valeria a pena. Mas o livro que Patti Smith escreveu para uma das pessoas mais importantes de sua trajetória é muito mais do que isso. O processo de construção desses dois artistas é o que há de mais fascinante na obra. Você conhece Patti Smith como a líder de uma banda de rock, certo? Foi essa posição, afinal de contas, que a alçou à fama. Mas a garota Patti de vinte anos queria desenhar, depois queria ser poeta. Seu primeiro violão foi um presente, um tanto tardio, do dramaturgo Sam Shepard, em 1971. “O que me chamou a atenção foi um velho Gibson preto 1931, um modelo da Depressão”, ela conta. “O corpo havia rachado e sido consertado atrás, e os pinos das tarraxas estavam enferrujados. Mas alguma coisa naquele violão tocou meu coração.”

Assim como Patti, Robert Mapplethorpe passou por diversas formas de expressão até encontrar certo reconhecimento através da fotografia. E tudo começou com uma máquina Polaroid emprestada. Em resumo, havia uma grande energia criativa nessas duas pessoas, uma energia transbordante, que vazava para diversos campos da arte. Antes de meados dos anos 60, talvez esses campos fossem mais compartimentados e independentes. Após o surgimento da Factory de Andy Wharol, no entanto, tudo havia mudado para sempre. Ao menos em Nova York.

Talvez o mais bonito do livro seja perceber e ir acompanhando de que maneira a arte de Robert alimenta a de Patti, e vice-versa. Há uma comunhão intensa, que se mantém mesmo quando a relação amorosa se quebra. No início, os dois trabalham lado a lado, às vezes explorando temas semelhantes. Patti sempre acreditara no talento de Robert, talvez mais do que no seu próprio, como sugere essa passagem: “Ele usou três das fotos da cabine em que eu usava um chapéu de Maiakóvski, e cercou-as de borboletas e anjos de toile de Jouy. Eu sentia, como sempre, um prazer imenso quando ele me usava como referência em um trabalho, como se através dele eu pudesse ser lembrada”.

Quando Patti Smith faz suas primeiras aparições em público, elas são repletas de hesitações. Em determinado momento, a artista chega a sugerir que conquistou mais respeito na cena nova iorquina apenas porque mudou o corte de cabelo (nunca saberemos se ela tem ou não razão). Fato é que, tão logo Patti começa a ler seus poemas, as pessoas passam a reconhecer seu talento. No fim, é ela a estrela que desponta. Uma estrela humilde, generosa e extremamente leal a sua arte e aos amores de sua vida.

5/5 - (1 avaliações)

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