A escritora baiana Renata Belmonte é a autora do mês da TAG Curadoria com o romance de estreia Mundos de uma noite só, uma história íntima, narrada com concentração e importância, que solicita a atenção sensível do leitor. A sensação é de estar penetrando no delicado território existencial de alguém que nos confia as dores de sua história pessoal, suas questões em aberto, suas incoerências, instabilidades e inquietações mais profundas. Confira aqui a entrevista exclusiva de Renata Belmonte para a revista da TAG!
Além do arrebatamento afetivo, Mundos de uma noite só traz uma arquitetura sofisticada e um primoroso trabalho de linguagem que tornam o encontro com o livro uma experiência que joga com a elasticidade do tempo. Ele avança e retrocede na perspectiva da protagonista, intercalado com passagens de um livro dentro do livro – objeto que ela encontra em meio às coisas de sua mãe. A narrativa revela ao leitor e à personagem algumas das respostas que ela passara a vida buscando, sem deixar de abrir novas e instigantes perguntas.
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1- Além de escrever, você atua como advogada. Como começou sua relação com a escrita, e como você equilibra essas duas camadas da sua atuação profissional?
Minha relação com a literatura se confunde com a minha própria compreensão enquanto sujeito. O modo como existo está entranhado no meu exercício diário de fabulação. Penso que sobrevivi a uma infância entediante porque inventei formas mágicas de suportar a realidade. Ainda muito nova, tornei-me leitora de ficção e esse hábito me acompanha. Na adolescência, inclusive, já tinha alguns contos publicados em veículos de imprensa. Aos 21 anos, ganhei um prêmio para autores inéditos e lancei o Feminamente, meu primeiro livro.
Nesta época, eu já estava na faculdade de Direito e me parecia muito natural que as minhas personas convivessem. Encontrava espaços internos para as duas e pensava até serem complementares. Até porque o Direito me permite, além do meu sustento financeiro, a liberdade de escrever a partir do meu desejo, sem ser pautada por demandas específicas do mercado editorial. Ou seja: vejo vantagens em habitar extremos e alternar posições. Meu grande desafio, de fato, foi conciliar a maternidade com a literatura. Ambas pedem uma atenção absoluta e quase vedam escapes. Sempre sonhei em ser mãe, mas não tinha ideia do quanto era necessária uma intensa entrega do seu eu para o exercício da função. Mas essa é uma outra e longa conversa.
2- Mundos de uma noite só foi sua estreia no romance. Como foi o processo de criação dessa história, e como tem sido a repercussão com os leitores desde o primeiro lançamento, em 2020?
A primeira versão do Mundos de uma noite só ficou pronta e foi vendida para uma editora portuguesa, em 2012. Ocorre que, depois de um breve período no mercado brasileiro, tal casa optou por não continuar atuando no país e eu pedi um distrato, antes da publicação, pois sempre desejei ser lida pelos meus conterrâneos. E o que se sucedeu, depois deste acontecimento, foi uma série de imprevistos e desencontros que geraram um atraso de oito anos, até o livro encontrar uma nova editora que topasse editá-lo. Ele era considerado, por muitos que liam os originais, como um romance sofisticado demais estruturalmente. Sofri muito, neste período, pois tinha certeza de que o Mundos encontraria seus próprios leitores e nunca menosprezei meu público.
Em 12 de março de 2020, ou seja, na véspera de nos trancarmos em casa por conta da pandemia, ocorreu o lançamento do livro. Na noite de autógrafos, estávamos (eu e os presentes) muito felizes, não imaginávamos com exatidão a gravidade do porvir. E se tudo que ocorreu depois deste dia parece ainda bruma na memória, também é feita dela a matéria deste grande sonho que realizei. Indicado aos prêmios São Paulo e Oceanos, o romance chegou nas vidas daqueles que precisavam dele, minha maior premiação. Até hoje, recebo mensagens de leitores que encontraram, em suas páginas, alguma espécie de companhia para suas angústias profundas.
Sinto que nada é por acaso e, neste março de 25, justo quando o livro completa cinco anos, está sendo publicada esta sua nova edição pela TAG. Espero, portanto, que ele continue trilhando a sua jornada e quero dizer que ficarei feliz em saber como será recepcionado pelas pessoas que o receberão em suas vidas.
3- Seu livro é um mergulho profundo no mundo interno das personagens. Como leitora, você também busca essa flutuação pela subjetividade humana? Quem são suas maiores referências na literatura?
Sim, sem dúvidas. Seja qual for o gênero que eu esteja lendo, sempre busco personagens vívidos, consistentes e densos. Confesso, inclusive, ter pouco interesse em romances que exploram mais descrições de ações e espaços do que as consequências destes nas vidas das pessoas. O humano, em suas adversidades, permanece no centro das minhas atenções. Susan Sontag, Clarice Lispector, J. M Coetzee, Milton Hatoum, Beatriz Bracher, Mohamed Mbougar Sarr, Luiz Ruffato, Carola Saavedra, Hilda Hilst, Guimarães Rosa, Kafka, Didier Eribon e Marguerite Duras são grandes referências para mim.
4- É possível dizer que o feminino é uma temática central neste livro. Você entende Mundos de uma noite só como uma obra feminista?
Sou uma mulher feminista porque entendo que a realidade material deste mundo, em regra, organizou-se a partir de dicotomias que dificultam a existência das mulheres no espaço público e as permitem menos oportunidades que os homens. E se, de modo geral, vejo a realidade assim, também sei que ela não é sempre absoluta, ou seja, circunstâncias específicas e particularidades podem atuar para que as coisas não se organizem como costuma estar descrito no figurino.
Dito isso, tenho muito cuidado em não criar personagens maniqueístas ou incorrer em narrativas panfletárias. Tampouco aceito infantilizações e reducionismos desnecessários. Verossimilhança e subjetividades diversas, na literatura, interessam-me muito mais do que a minha própria militância. Não fico cerceando minha voz ficcional ou tentando dar lições de moral para meus leitores. Acredito, profundamente, na capacidade de reflexão crítica de cada pessoa que abre um livro meu. Até porque, o que sempre tento propor é uma travessia pelo desconhecido que mora em todos nós.
5- Li uma declaração sua, a respeito do atravessamento das experiências pessoais do autor na escrita, de que “os fatos podem não ser autobiográficos, mas as emoções são”. Quais emoções te instigaram a escrever este livro?
O Mundos de uma noite só parte de uma experiência subjetiva radical de sua personagem frente a um momento limite. Portanto, embora não seja um livro de autoficção, cada cena dele foi permeada pelo meu próprio espanto de habitar um corpo de mulher e de estar viva. Sem dúvidas, o horror e angústia que senti, ao longo do meu crescimento, bem como as lutas que travei para me tornar quem sou, podem ser sentidos a partir da trajetória da protagonista. No entanto, também fiz um exercício de invenção ao me permitir sensações novas que decorrem da própria experiência de criação. Nunca estou separada daquilo que estou escrevendo. Não há transcendência sem essa mistura.
6- Essa é uma história marcada por traumas transgeracionais, algo que, em maior ou menor medida, faz parte da experiência de qualquer pessoa – seja dentro da própria família, seja em relação a um determinado grupo social. Enquanto leitora e escritora, você enxerga a literatura como um território de cura dessas feridas compartilhadas?
Penso que a literatura não tem que cumprir, de modo pré-determinado, função alguma, pois ela basta em si mesma. No entanto, também não posso ignorar o efeito transformativo que o Mundos de uma noite só teve na minha existência, assim como os relatos que recebi dos seus leitores. Tive que olhar muito de perto para algumas dores profundas para ser capaz de escrevê-lo. E, ao longo deste processo, pude também compreender que não precisava mais ficar tão identificada com meus ferimentos e cicatrizes, que minha grande subversão narrativa seria renunciar à posição de vítima para conseguir construir uma nova história íntima, descobrindo minha real voz e autoria existencial.
Estou sempre em movimento, por vezes, assim como a personagem principal do romance, interrogo Deus, tento compreender certos desafios que me são impostos, sou uma espécie de inconformada com o estado das coisas, creio que esse foi um dos motivos que me tornou escritora. Mas descobri que a única coisa que permite qualquer pessoa, mesmo consciente de sua mortalidade, suportar seus medos, é uma espécie de fé e apaixonamento pelo não sabido. Escrever e ser lida, sem dúvidas, me ajudam a dar conta da alternância dos papéis de protagonista e narradora da minha vida.
A ESTANTE DE RENATA BELMONTE
Primeiro livro que li: Minha primeira memória como leitora é de um livrinho infantil que se passava numa fábrica de brinquedos. Eu tinha, na época, algo entre sete e oito anos. Jamais esqueci a experiência de um tempo dentro do tempo que ele me proporcionou.
Livro que estou lendo: Nostalgias canibais do Odorico Leal.
Livro que mudou minha vida: Juventude do J.M Coetzee. E o conto “Amor” da Clarice Lispector (presente no Laços de família).
Livro que eu gostaria de ter escrito: A mais recôndita memória dos homens, do Mohamed Mbougar Sarr.
Último livro que me fez chorar: Piscinas russas, meu próximo romance, o livro dois da trilogia inaugurada pelo Mundos de uma noite só. Senti uma dor imensa enquanto escrevia uma das cenas mais importantes do enredo. Chorei por quase duas semanas depois do seu fim.
Último livro que me fez rir: O colibri do Sandro Veronisi (que tem pequenos momentos hilários, embora não seja um livro cômico).
Livro que não consegui terminar: Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa. O livro dos livros, a travessia infinita pela vida e língua, meu eterno companheiro de jornada, algo que me causa tanto maravilhamento que nunca consigo terminar, pois sempre temo perder, acabar, morrer também quando do seu fim.