O livro de memórias de Patti Smith tira seu encanto do fato de ter muitos lados, como uma joia lapidada. Dois dos mais óbvios: é um caso de amor extraordinário, nada convencional mas profundamente tocante, e um relato de interesse histórico sobre um tempo e lugar de rara efervescência artística – a Nova York dos anos 1960 e 1970, com seu carimbo “Andy Warhol” impresso na testa em cores chapadas.
Embalado na prosa correta da compositora Patti Smith, com achados poéticos espalhados aqui e ali para garantir que sigamos em frente à espera de novas pepitas, esses dois aspectos bastariam para garantir o prazer da leitura. Só Garotos, no entanto, oferece mais.
Pelo menos para mim, sua magia – que é irregular, mas inegável – deriva principalmente de ser uma variação sobre determinado tema-clichê. Um tema que românticos compartilharam com modernistas e estes com pós-modernos, e que apesar de gasto conserva certo frescor: o da vida boêmia abraçada por jovens que rejeitam os valores burgueses e encaram barras pesadas em sua busca de reconhecimento como artistas.
Na vida real esse tipo de história quase sempre tem final frustrante, que nem merece ser chamado de infeliz: o anticlímax de uma mediocridade que se instala devagar, um pouco a cada dia. Há também casos famosos, como o dos poetas franceses Arthur Rimbaud – uma das obsessões de Patti Smith – e Paul Verlaine, em que o êxito vem, mas acompanhado de um cortejo de desgraças. A arte cobra seu preço.
O clima de Só Garotos é diferente, mais próximo do conto de fadas. Se as lágrimas do bonito final são garantidas pela morte de Robert Mapplethorpe, de Aids, o espírito geral do relato de Patti Smith fica longe do trágico. Depois de anos de penúria, ela e seu cavaleiro andante desabrocham como artistas de imenso sucesso, inclusive material – ela como estrela do rock, considerada precursora do punk, e ele como fotógrafo-celebridade e ícone gay.
Apesar de saboroso, o livro me deixou uma sensação de incompletude – eu quase ia dizer de insinceridade, mas me contive. Há na voz que narra essas memórias uma ingenuidade que, se parece adequada ao início da história, vai ficando inverossímil à medida que os personagens enfrentam perrengues, quebram a cara, crescem e deixam de ser só garotos. Quando Mapplethorpe sai do armário, essa sensação fica mais intensa. É como se Patti Smith evitasse falar do assunto como adulta, do quanto sofreu com aquilo. Soa nessa hora, curiosamente, quase careta.
Gostei muito desse teu comentário sobre essa “insinceridade”. Tive esse mesmo sentimento sobre a narrativa. Achei fantástico do ponto de vista dos encontros, mas em alguns momentos parece que a narrativa ficou um pouco rasa, passando longe das dores que, com certeza, esses personagens devem ter sofrido.