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Quem está aqui e quem estava lá

Marcelo Rubens Paiva, na época do lançamento de "Feliz Ano Velho" Marcelo Rubens Paiva, na época do lançamento de "Feliz Ano Velho" Share this post

Para quem não estava lá, é difícil conjurar o impacto que teve o lançamento do primeiro livro de Marcelo Rubens Paiva, Feliz ano velho, em 1982, pela então descoladíssima editora Brasiliense.

O Brasil estava saindo de uma ditadura de quase duas décadas. Ou seja, havia toda uma geração – que era a do autor de 23 anos e também a minha, então com 20 – que começava a vislumbrar pela primeira vez o que poderia ser a vida fora de um ambiente politicamente claustrofóbico, careta, militarizado, doentio, criminoso e liberticida.

Aquela promessa de um mundo mais arejado, moderno e decente chegando junto com a vida adulta, tudo misturado, dava uma espécie inebriante de onda, e essa onda – sonho de qualquer escritor – pulsava em cada página do livro do Marcelo

(Como logo descobriríamos, a democracia também tem sua penca de problemas, ainda que seja sempre e incomparavelmente superior a qualquer forma de ditadura. Mas naquela antessala da redemocratização tudo era ainda euforia, e é esse clima que se deve ter em mente para entender 1982.)

Com seu jeitão despretensioso, chegando à literatura por uma porta quase antiliterária de linguagem crua e urgência na tradução das experiências dos adolescentes brasileiros de classe média urbana dos anos 1970, corajoso na abordagem desencanada de temas como sexo e drogas, soando até naïf no abuso de gírias e palavrões – Marcelo virou porta-voz de uma geração. Merecidamente, seu livro vendeu à beça.

A honestidade daquele “romance de formação” memorialístico não estava só no tratamento das questões coletivas. Dores intransferíveis do autor também eram futucadas com desassombro, duas delas à frente das demais: o banal acidente de mergulho que o havia deixado tetraplégico e, ainda na infância, o “desaparecimento” de seu pai, o deputado Rubens Paiva, uma das mais célebres vítimas da tortura assassina nos porões da repressão.

Naquele momento havia um ativo filão de memórias da ditadura sendo explorado pelo mercado editoral. Ex-guerrilheiros como Gabeira, Sirkis e Polari viraram figurinhas fáceis entre jovens ávidos por informação sobre nossa abafada história recente. A diferença é que Feliz ano velho não era um livro diretamente político, chegava à política pelo caminho da vida, o que o tornava mais forte.

A cadeira de rodas legada pelo acaso e a orfandade por obra de gorilas compunham, no relato do Marcelo, um só emblema da barra pesada contra a qual era preciso lutar sem esmorecer. A mensagem final era otimista.

Achei impossível não pensar o tempo todo naquele primeiro livro do autor ao ler seu título mais recente. Ainda estou aqui também é um relato memorialístico, também fala do assassinato de Rubens Paiva, também busca um tom desabrido ao tratar de questões dolorosas. Mas a referência familiar é a mãe, Eunice, em vez do pai, e a voz sem filtro do garoto de vinte e poucos anos deu lugar aos timbres modulados de um cinquentão.

O novo livro tem linguagem incomparavelmente mais polida. Salta aos olhos que o autor amadureceu e “escreve melhor”, num sentido convencional de qualidade – embora chamar a velha crueza de “mal escrita” seja uma forma de miopia literária. O cru costuma ser mais difícil de lograr do que o cozido.

É significativo que a ponderação e um certo desencanto de fundo tenham tomado o lugar da onda de euforia e urgência. Isso espelha a trajetória coletiva do país e até do mundo, que vivem um momento de grandes incertezas.

Curiosamente, está lá mais uma vez a superposição de uma limitação física – no caso, o Alzheimer da mãe – e uma questão política grave. Quando tanta gente, por desinformação ou qualquer outra forma de infelicidade, sonha com a volta da ditadura militar, é preciso lutar com todas as forças contra o esquecimento. Diferenças à parte, o sujeito de Ainda estou aqui é sem dúvida alguma o autor de Feliz Ano Velho.

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