Ok, confesso: Limonov me dobrou ao meio. O livro de Carrère foi uma experiência fascinante e, ao mesmo tempo, exaustiva. Minimalista, agressivo, trash, corajoso, cruel e absolutamente real (sim!!!), este livro brilhantemente urdido me levou para o gulag da minha própria história familiar.
Minha relação com a Rússia, ex URSS, é ambígua. Meu avô polonês emigrou em 1936, apenas três anos antes do começo da Segunda Guerra Mundial. Mas, na Polônia, ficou toda a sua família. Aqueles que sobreviveram à guerra (os que não morreram em batidas nazistas, no incêndio criminoso da casa da fazenda da família, nos campos de concentração ou em ações da AK – Armia Krajowa, a tão pouco conhecida resistência polonesa -, ou assassinados pelos soviéticos nos primeiros anos do pós-guerra quando o jogo de bandido e mocinho se inverteu completamente) tiveram de suportar os difíceis tempos socialistas sob o controle soviético. Ainda tenho as cartas, numa caixa lá no fundo do meu armário, todas grifadas e censuradas, que lograram atravessar a quase intransponível fronteira socialismo e capitalismo para chegar aqui no sul do Brasil.
Com Limonov, tive a sensação de atravessar a epiderme do mundo soviético, passeando por seus órgãos vitais e suas vísceras, navegando no seu sangue fervente, e me vi do outro lado do caos que permeou a vida da minha família materna. Limonov, um filho do século XX num lugar assolado por mudanças político-sociais, pela violência e pela mais profunda pobreza. Um personagem real (que mais parece de ficção) – mas a vida é sempre maior do que qualquer ficção, não é? Um anti-herói russo, charmoso e trágico e violentamente debochado. Ele me lembrou o polonês Roman Polanski, cuja vida também supera qualquer romance. Ambos, Limonov e Polanski, cresceram em meio ao horror da Segunda Guerra, mas em lados opostos. Vidas incríveis, dignas de registro. Como escreve Carrère em seu livro: “a única vida digna dele (Limonov) é uma vida de herói (…) a vida da família sossegada e harmoniosa (…) não passa de justificação de perdedores.”
Para muito além do incrível cenário russo, dos conflitos internos, da ascensão e queda de Stalin e do próprio socialismo, das lutas por independência, Limonov é um livro impressionante, perfeitamente urdido por Carrère, narrador-personagem sem um pingo de indulgência: uma aventura e uma aula de geopolítica, um fascinante retrato de um homem que nasceu para quebrar paradigmas, de ladrão a operário, de mendigo a mordomo, de poeta desconhecido a romancista da moda! Homossexual e guerrilheiro, Limonov é absolutamente russo nos seus contrastes e violentos paradoxos. Enfim, um personagem que extrapola qualquer ficção brilhantemente registrado por Emanuel Carrère. Mas leia com um bom vinho (ou seria vodka?), porque você vai precisar.