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Indicações de livros

Um grego pândego contra o nojinho narcisista

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Aléxis Zorbás é parente do adorável Dersu Uzala do cineasta Akira Kurosawa, ainda que em versão mais hedonista e pândega. O velho tocador de santir encarna uma figura comum na ficção: o sábio inculto, o homem do povo que ensina ao homem ilustrado algum segredo vital que a civilização o levou a desaprender.

Para além disso, o que mais chamou minha atenção em Vida e proezas de Alexis Zorbás, na ótima tradução direta do grego assinada por Marisa Ribeiro Donatiello e Silvia Ricardino, é a qualidade da escrita de Nikos Kazantzákis, que eu nunca tinha lido. Sua reputação eu conhecia, mas de algum modo ela parecia pouco compatível com o sucesso da popularesca versão cinematográfica de seu romance mais famoso, estrelada por Anthony Quinn.

É triste constatar que, para muitos leitores contemporâneos, nada disso estará em primeiro plano no livro. Vão preferir desqualificar a obra com base no – indiscutível – machismo de Zorbás, em parte compartilhado pelo narrador sem nome, alter ego de Kazantzákis.

Esse tipo de reação tem sido comum no terceiro milênio – uma espécie de nojinho narcisista diante daquilo que, visto pelo prisma ocidental contemporâneo, não reflete nossas excelentes virtudes. E, se não o faz, só pode ser lixo produzido por preconceituosos odientos. Isso vale para o “machismo” de Kazantzákis, para o “racismo” de Mark Twain e Monteiro Lobato, para a “homofobia” de quase todos os escritores anteriores à geração Beat e assim por diante.

Minha tristeza vem do fato de que, com base em raciocínios tão simplistas, ainda que bem intencionados, esse leitor estará se condenando não só a descartar a maior parte da história da literatura, produzida em contextos históricos diversos do atual, como também a deixar de compreender em profundidade os mecanismos sociais e psíquicos que engendram os preconceitos que condena.

No caso de Kazantzákis, filósofo e místico, isso é especialmente claro. Ele é discípulo de Nietzsche, um pensador famoso por sua misoginia, que declarou: “O homem será preparado para a guerra e a mulher para passatempo do guerreiro”, mandamento que Zorbás assinaria. O que o escritor grego deixa claro nesse livro mais profundo do que parece é a crise de um modelo masculino de compreensão do mundo que está na raiz da própria civilização ocidental – nascida, não por acaso, na Grécia de Zorbás.

É significativo notar que nada disso impediu Kazantzákis de ser o grande herói literário da brasileira Hilda Hilst, também atormentada e também mística, que já era feminista antes do default e que decidiu se tornar uma reclusa dedicada exclusivamente à escrita, nos anos 1960, depois de ler em francês seu Lettres au Grecco.

“O anjo, ele [Kazantzákis] diz, nada mais é do que um demônio enriquecido e a mais torturada das criaturas de Deus é Lúcifer”, escreveu Hilda em carta ao amigo Carlos Dummmond de Andrade. E completou: “Ah, Carlos, o homem é de arrepiar os cabelos e tudo mais”. Tinha razão. Mas entender isso requer a determinação e a coragem de ir além da própria imagem no espelho.

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